quinta-feira, 30 de outubro de 2014

A crise de identidade da esquerda

Há uns dias Manuel Valls defendeu retirar-se a palavra “socialista” do nome do Partido Socialista Francês. É compreensível e eu apoio. A hipocrisia já começa a ser demasiada.

Há semanas coloquei aqui um texto sobre o sectarismo da esquerda, sobre a prisão que a nossa esquerda vive às utopias do passado. Hoje, mais do que nunca, reforço essa minha posição. Não se fazem as perguntas certas, e a pergunta mais crucial de todas ainda está por responder: o que é ser de esquerda hoje?

Chega de pensar em revoluções à moda do séc. XX, de tentar reatar chamas que já nem acesas estão. Os problemas da sociedade de hoje são diferentes, muito mais complexos psicologicamente, muito mais difíceis de resolver. Não só pela complexidade do tecido existencial que os constitui, mas porque a mudança já não se resume ao nosso quintal e estende-se pelo bairro inteiro.
O Estado Social escandinavo é bom (segundo o meu próprio conceito de bom, que engloba questões como a intervenção do estado na proteção dos desfavorecidos, liberdade de expressão, fomento à educação, etc). No curto prazo, deve ser essa a referência para os combates a fazer. Mas infelizmente não chega. É preciso algo de mais radical mas ao mesmo tempo mais gradual e global. E quando digo radical, digo romper com os mitos bernsteiniano e soviético.
É preciso acabar com a hipocrisia que senhores como Valls personificam. Ser de esquerda é querer realmente progredir. E esse crescimento começa na própria autocrítica, na autoanálise. Começa por sermos francos connosco e aceitarmos o falhanço da esquerda tradicional. Seja por se ter desviado ideologicamente para o neoliberalismo e com isso ter perdido a personalidade, seja por ter ficado agarrada aquilo que fazia sentido no passado e que hoje toma forma num discurso descontextualizado e desligado da realidade, seja até, em último caso, por não assumir as responsabilidades criminosas dos regimes autoritários que criou e apoiou.

Por isso é que digo que está na altura de alargar o debate, de nos questionarmos e não termos medo de participar. A esquerda tem de ter coragem para participar no poder e com isso dar os primeiros passos para a transformação mas tem também de se questionar, tem de refletir e estudar, para quando chegar o momento do passo derradeiro, saber que tipo de sociedade pós-capitalista quer. Chega de reviver o passado.
Não chega reclamar pelas conquistas socioeconómicas do consenso do pós guerra ou insistir no mito comunista ortodoxo. A esquerda perdeu-se exatamente porque não soube debater sobre si mesma e compreender as transformações da sociedade, perdendo a pouco e pouco a sua identidade e o seu carácter progressista.

Chega de sectarismos à Estaline mas chega também dos Valls deste mundo. É preciso (re) ler o Marx, pensar pela nossa cabeça e construir a nova esquerda.


(Porque desde 1789 que aprendemos que a guilhotina nada resolve.)

domingo, 12 de outubro de 2014

O Estado somos nós

É difícil assumir a responsabilidade dos nossos atos. É difícil arcar com as consequências das nossas escolhas. É pesado o fardo de ser o único capaz de ultrapassar as nossas barreiras interiores. Mas mais difícil tarefa, é conciliar toda essa responsabilidade com o desejo fervoroso de ajudar os outros a assumi-la.

E nisto entra o papel do Estado. Mas qual é ele? Será apenas um Estado mínimo cuja função é atenuar as desigualdades e proporcionar aos desfavorecidos iguais oportunidades? Ou será algo de mais profundo, mais paternal, capaz de nos impedir de tomarmos caminhos que serão danosos para a nossa própria existência?

Na minha opinião, este debate é demasiado complexo para me poder limitar a dar uma opinião simplificada. Contudo, não quero deixar de expressar a minha visão sobre este tema.

Para mim, o Estado (essa entidade quase abstrata escondida atrás das longas filas de espera da segurança social e dos hospitais públicos) não é mais do que o conjunto de todos nós. É o conjunto de todas as instituições e pessoas. É a única entidade em quem podemos confiar exatamente por fazermos parte dela.

Mas terá o Estado de ter o papel paternal de nos impedir de seguir rumos que nos levam à infelicidade? Terá o Estado o direito de me dizer o que eu devo ou não fazer relativamente à minha vida? Por muito que nos custe ver um amigo numa relação amorosa complicada, nada saudável, temos o direito de lhe tirar a oportunidade de viver essa relação hedionda com o(a) parceiro(a)?  

Na minha jovem opinião, não. O Estado não pode ultrapassar o limite de “safety net”. Não tem o direito de ser o pai que nos dá ordens, mas tem o dever de ser a mãe que nos recebe sempre de braços abertos mesmo quando erramos. O Estado tem de ter paciência, tem de ser compreensivo, empático. Mas jamais pode ser autoritário, manipulador e moralista. O Estado jamais pode ter como missão incutir valores morais aos cidadãos.

Mas afinal, qual é a linha ténue que separa esses dois Estados?

Para mim essa linha é demasiado complexa para ser definida com meras palavras ou com réguas e esquadros. O papel do Estado tem que ser algo constantemente questionado, avaliado e melhorado. Na economia, por exemplo, tem de ser influente. Tem o dever de garantir aos que vivem em piores condições o direito a viver uma vida digna. Tem de garantir preços baixos (acessíveis a todos) nos sectores basilares da sociedade. Tem de ter um papel ativo.
Mas o contrário se passa quando tocamos nas tradições e na cultura. Não apoiaria um Estado que me ditasse que tipo de comidas eu podia ou não comer, mesmo tendo como fundamento as mais recentes descobertas ao nível da nutrição. Não apoiaria um Estado que me dissesse a que horas o meu filho se deve deitar, com que brinquedos deve brincar ou que roupa deveria vestir. Não apoiaria um Estado que me impedisse de ver filmes pró-fascistas, que me impedisse de me manifestar por mais radical que fosse a minha posição, que me impedisse de ler livros de movimentos totalitários, que me impedisse de criar o meu próprio jornal ou que monopolizasse qualquer meio de comunicação.

O Estado não pode nunca ser esse ser estranho que me vai ensinar a viver a vida. Mas tem de ser sempre aquela entidade que me permite vivê-la, independentemente da minha condição socioeconómica à nascença.
E seja qual for o Estado que tivermos, ele será sempre o conjunto de todos nós.


quarta-feira, 8 de outubro de 2014

Intolerância Moderada


  “Assim, cada um destes críticos indulgentes espera levar água ao seu moinho: regulação dos mercados financeiros, limitação dos prémios dos directores, abolição dos “paraísos fisceis”, medidas de redistribuiçãoo, e sobretudo um “capitalismo verde” como motor de um novo regime de acumulaçãoo e gerador de empregos. O caso está arrumado: a crise constitui uma oportunidade para uma melhoria no capitalismo, não para uma ruptura com ele.”

  “Mais do que um grande clash, podemos esperar uma espiral descendente até ao infinito, um abatimento perpétuo que nos dará tempo para nos habituarmos a ele.”

Anselm Jappe, em “Sobre a Balsa da Medusa”

  A questão da participação no governo está a criar uma cisão na esquerda. É uma questão pertinente, pois uma escolha ou outra têm resultados opostos se não contraditórios. Pelo menos nas circunstancias em que nos encontramos hoje.
  O Ricardo falou no perigo do sectarismo da esquerda, que seria a austeridade eterna, o domínio político da direita neoliberal e a descredibilização da democracia e da utilidade dos partidos. O sectarismo dessa esquerda 'radical' que se recusa à participação no governo. A outra esquerda, 'moderada', que deseja uma participação conjunta no governo, impensável sem a coligação com o PS, não é sectária, mas intolerante com a sua 'irmã radical'.
  Entende-se que, quando pela primeira vez nos últimos anos a esquerda (mais alargada) se tenta reunir e unir esforços, se fique frustrado por um dos sectores não estar interessado neste projecto. Mas é necessário compreender que as razões porque esse sector não o faz são válidas.
  Falo agora do perigo da coligação alargada de esquerda. Para o fazer basta fazer algumas alterções às ideias do Ricardo. O perigo seria: capitalismo eterno, o domínio político do centrão conciliador, a credibilização desta democracia e destes partidos.
  Porque a coligação não vai fazer qualquer ruptura com o sistema actual nem desafiar as instituições de Bruxelas, pelo menos não seriamente. A democracia está descredibilizada e com fundamento, porque de democracia pouco resta (bastam os números da abstenção para sustentar esta afirmação) e uma coligação deste género não é muito diferente da coligação presente. Não deixa de se enquadrar na rotatividade bipartidária PS/PSD, assim com a coligação com o CDS não quebra o cíclo do centrão.
  Pior é que a esquerda se continue a queixar de Bruxelas e da Merkel, quando esses são apenas  sintomas tardios de uma patologia conhecida. 
  "Seria muito mais giro e fácil mudar tudo duma vez só, se não vivêssemos na situação actual". Giro seria se nos anos das vacas gordas alguém tentasse dizer que o sistema capitalista não estava a funcionar bem e que deviamos abdicar dele. Se não se faz uma mudança radical (de raiz) em época de insatisfação e consciência das falhas estruturais do sistema, então quando se faz? Nunca, talvez. Mas então a mesma resposta serve para a pergunta 'quando acabará o capitalismo'?
  Admito que não querer alinhar num governo com o PS seja razoável, porque fazê-lo pode ser só legitimar o actual estado de coisas. Alinhar com um governo que pouco fará de ruptura. Não censuro quem não o quer fazer, da mesma forma que não censuro quem o tentará. Apenas porque admito a possibilidade de haver várias respostas a um mesmo problema. Espero que um governo de coligação alargada de esquerda ganhe as eleições, porque tenho a esperança de que será menos mau que o governo actual, mas não vejo nele nenhuma espécie de saída. Apenas uma espécie de bandaid numa ferida muito profunda.
  Marginalizar e rotular pejorativamente de radicais quem não o deseja só dificulta uma mudança séria. Se passados tantos anos de 1848 ainda não se percebeu que 'radicalismos' só nos levam ao fracasso, passados tantos anos desde 1789 já deviamos ter entendido que reformistas nos levam ao fracasso - hoje.
  

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Sectarismo na esquerda

Assusta-me o sectarismo. O pensamento dogmático. Vemo-lo nos neoliberais cegos por pressupostos e de mão dada com os grandes grupos financeiros mas também o vemos na esquerda. Sobre os primeiros já muito pensei, conversei e ataquei. Sobre os segundos começo agora a perceber o seu perigo. E este perigo atinge todos os cidadãos, não atinge só os próprios e os amigos.

Que perigo é este? O perigo da austeridade eterna e do domínio absoluto da política portuguesa pela direita neoliberal. O perigo da descredibilização da democracia e da utilidade dos partidos. E porque é que digo que o sectarismo nos leva a esse perigo? Porque uma esquerda presa a dogmas, a ideais e pressupostos (tão rígidos e falsos como os dos amigos de Friedman), sem coragem para arriscar a tomada do poder e a participação em governos de coligação, é a verdadeira morte do artista.

Diagnósticos? Já muitos foram feitos e todos sabemos a situação do país. Já muita gente se apercebeu do que se está a passar, dos constrangimentos que nos estão a ser impostos. Mas ninguém fala em soluções. Ninguém consegue apresentar soluções realistas e aplicáveis. Se eu queria que o mundo fosse diferente? Claro que queria, mas é a participar no governo que se dá os primeiros passos em direção a uma sociedade diferente. Seria muito mais giro e fácil mudar tudo duma vez só, se não vivêssemos na situação atual.

É uma pena que tantas esquerdas não compreendam o papel fulcral que têm a desempenhar no poder para realmente se sentir uma mudança positiva na nossa vida política. É uma pena que fiquem presos ao seu dogmatismo e arrogância de iluminados incompreendidos. De sonhadores que se recusam a arregaçar as mangas e trabalhar com as ferramentas que nos dão. E a pena que tenho não é deles. Daqui a uns anos é bem possível que venham a mudar de posição (dependendo do que os órgãos da direção lhes disserem para fazer). Tenho é pena dos portugueses que anseiam por um governo que seja capaz de mudar a vida no campo do que é possível e do que é viável, tendo em conta a nossa perda de soberania e as possíveis consequências de atos mais corajosos e dignos frente aos burocratas de Bruxelas.


É uma pena que passados tantos anos de 1848, ainda não se consiga compreender que os radicalismos só nos levam ao fracasso.