segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Adam Smith, Darwin e a ética neoliberal - Da harmonia dos interesses à concorrência selvagem

              Escrevo este comentário em seguimento ao excelente post do Ricardo Henriques intitulado O Erro de Marx. Enquanto que o Ricardo procurou desmistificar os valores da esquerda obsoleta para que ela se possa desfazer do síndrome de Marx e assim evoluir enquanto força ideológica renovada, o comentário que se segue pretende atacar alguns dos valores centrais da ideologia neoliberal, partindo do pressuposto de que a interpretação dos pensadores neoliberais clássicos do contributo de Adam Smith estão incorrectas e desactualizadas. Para esse efeito, darei toda a atenção necessária ao evolucionismo de Darwin, mas irei também focar-me nas realidades económicas, sociais e demográficas que foram inviabilizando a teoria da harmonia dos interesses, sendo estas duas fontes, uma teórica e outra mecânica, os principais processos de inviabilização das economias neoliberais enquanto um todo.
             
             No seu livro, A Riqueza das Nações, Smith deu nascimento à escola do laissez-faire. Anteriormente tinha já chegado a outras conclusõesEstudando a sociedade, observou nela a existência de três classes: Aqueles que vivem de rendas, aqueles que vivem de salários e aqueles que vivem dos ganhos (earnings/profits). Afirmou também que os interesses destas três classes eram idênticos, ou seja, que seguiam todas um interesse comum - o interesse geral da sociedade. Havendo ou não uma consciência individual da harmonia destes interesses seria então uma questão secundária. Esse interesse estava baseado no interesse individual: Maximizando os seus ganhos, cada indivíduo faria o melhor de si mesmo. O indivíduo não  estaria assim disposto a servir o interesse público - sendo que até poderia não lhe acrescer valor nenhum - mas sim a servir-se a si mesmo. Assim sendo, se todos os indivíduos seguissem o seu próprio interesse, conseguiriam, a médio e longo prazo, melhorar a sociedade como um todo. Adam Smith chega assim a uma conclusão nascida das condições económicas e sociais vigentes na sua era: A Riqueza das Nações é uma reacção ao domínio do Estado e do regime nas vidas dos indivíduos. A Mão Invisível iria assim substituir o Estado para que a sociedade se pudesse melhorar, não havendo travão ao potencial dos indivíduos enquanto colectivo, nem do colectivo enquanto indivíduos.

        A harmonia dos interesses de Adam Smith, para além de ser uma reacção a um contexto social, fazia todo o sentido economicamente, aplicando-se perfeitamente à estrutura económica do século XVIII: Uma sociedade de pequenos produtores e comerciantes interessados em maximizar as suas trocas e ganhos. Era também uma sociedade em que a produção não implicava uma especialização muito aprofundada e em que havia mais interessados na maximização da produção do que na redistribuição da riqueza. 

     Enquanto que teoria do laissez-faire se encontrava ainda no laboratório pessoal de Smith, começaram a surgir invenções, tal como a máquina de vapor, que permitiriam a criação de indústrias gigantes, especializadas e sem fronteiras, e consequentemente de um maior proletariado mais direccionado para a redistribuição da riqueza. A invenção de Smith estava, pois, minada por outras invenções materiais. Uma vez concluída a criação das economias capitalistas, a harmonia dos interesses era agora mais normativa do que real: Quem sublinhava que existia ainda uma harmonia de interesses era a classe que estava preocupada em manter uma forma de dominância em relação aos trabalhadores. Enquanto que essa harmonia de interesses não existia realmente, a sua aparente existência devia-se ao crescimento da economia e da prosperidade sem precedentes. A contestação geral ainda não teria surgido porque a concorrência animalesca ainda não estava no ponto graças ao crescimento e expansão da economia, que davam lugar a novos sectores de produção, eliminando indirectamente a concorrência por sector. A questão das classes era ultrapassada pela introdução dos representantes das classes trabalhadoras no próprio mercado de bens. O capitalismo sobreviveu e bem durante esta fase inicial pela sua expansão e crescimento sectorial que parecia ter um potencial infinito.

     No entanto, rapidamente se sentiu o capitalismo a chegar aos seus limites, não ao nível do crescimento, mas do que ele representava tanto para os trabalhadores como para os empreendedores. Tínhamos chegado ao ponto em que a estrada tinha demasiados carros. Nas palavras de Karl Manheim, não é necessário controlar o fluxo do número de carros enquanto que este não excede a capacidade da estrada. O capitalismo, por força da sua expansão, chegou rapidamente a limitar a utopia liberal pela ferocidade da competição que tinha criado. Os escritos de Adam Smith serviam para economias pré-capitalistas, economias em transição para o capitalismo e economias na sua juventude capitalista. Depois disso, apenas servia para alimentar os estragos que viriam a causar. Assim, o sonho de que poderia haver uma harmonia eterna chegava ao seu fim. Segundo Dostoievski, o preço da eterna harmonia era demasiado elevado se implicasse o sofrimento dos inocentes.
    Nos finais do século XIX, o laissez-faire  ao nível internacional tinha beneficiado apenas  a Grã-Bretanha, deixando os restantes países em posições desiguais - facto que podemos associar à Alemanha dentro do Euro não racionalizado e indiferente face às desigualdades estruturais entre estados. Dentro da nova realidade económica, foi o evolucionismo de Darwin que permitiu justificar a nova harmonia de interesses. Ao nível da biologia, os mais fortes acabam por vencer os mais fracos. Esta mentalidade foi transplantada para a economia e o trabalho. Assim, a concorrência desmesurada, e portanto a destruição dos mais fracos, faz também parte da harmonia dos interesses. Não nos esqueçamos que o próprio Marx, no seu livro Theorien über den Mehrwert, disse que " o desenvolvimento da espécie (...) e por isso o desenvolvimento máximo do indivíduo, apenas se pode realizar ao longo do processo histórico onde certos indivíduos são sacrificados." Embora Marx teria certamente outra forma de ver o fim deste sacrifício, Darwin deixou uma marca clara através de todo o espectro ideológico. A marca do século. 

     A eliminação dos mais fracos é desde logo a faísca que transforma, sem que ninguém dê por isso, a harmonia dos interesses na concorrência selvagem e desmesurada, aplicando-se perfeitamente nas novas economias capitalistas, não apenas para justificar a dominância de uns sobre outros, mas também e sobretudo para maximizar o seu potencial de crescimento. Hoje, os resultados da concorrência selvagem levaram-nos ao crescimento das desigualdades entre indivíduos e regiões, à subordinação da política ao dinheiro e dos estados a empresas. Ao nível da política internacional, a insistência na harmonia dos interesses levou ao desastre utópico entre as duas guerras mundiais, alimentado por Woodrow Wilson e a SDN, que não entenderam que a harmonia dos interesses não servia para todos, e sobretudo não para os alemães, que tinham beneficiado muito das guerras em 1866 e 1870, e deixaram de lado políticas de poder (Power Politics) que poderiam ter evitado o desastre de 1939-1945. Nenhuma guerra se explica porque existe um maluco no poder de um estado. As guerras explicam-se mais pela inacção dos outros estados do que pela acção de um estado governado por um fanático.

   Com aquilo que sabemos hoje sobre a ideologia neoliberal, podemos concluir que os próprios neoliberais estão tentar aplicar uma utopia fora do seu tempo, sendo que Adam Smith desenhou uma teoria para a altura em que viveu. Seria como tentar aplicar a solução marxista num mundo hoje muito mais complexo. O génio de Smith não pode ser entendido por todos, e sobretudo não por aqueles que pretendem compreendê-lo. O evolucionismo de Darwin é uma realidade biológica. No entanto, tentamos aplicar uma verdade da natureza a uma realidade que é nossa, que podemos racionalizar e construir segundo aquilo que entendemos ser justo e exequível. A ética neoliberal baseia-se em valores nos quais acredito também, tal como a liberdade. Sou a favor de liberdade nos mercados, mas se ela se traduz em liberdade de nos esmagarmos uns aos outros é porque algo está errado. A liberdade não é empírica, deve também ela ser forjada e moldada segundo as necessidades e desejos que se apresentam. O neoliberalismo económico enquanto doutrina já falhou, agora vamos esperar pelas suas consequências.

   Citando Edward H. Carr: "O pensamento imaturo é essencialmente utópico e direccionado para um objectivo. O pensamento que rejeita o objectivo é o pensamento da velhice. O pensamento da maturidade associa o objectivo à observação e à análise"
   Vejo o pensamento neoliberal como o pensamento da imaturidade e da velhice. Mas nunca como o da maturidade.