domingo, 15 de março de 2015

Uma guerra que não é nossa

Se há equívoco que leva a desentendimentos de forma desnecessária e gratuita, é o equívoco dos falsos opostos.
Falo neste equívoco porque há um tema da atualidade que nos leva constantemente para discussões sem sentido onde se tomam posições automáticas sem reflexão. Falo da questão do ISIS e da intervenção dos E.U.A. no médio oriente. Este é um tema onde, muito mais à direita do que à esquerda, se tende a cometer o erro do "se não estás comigo, estás contra mim."
O sentimento anti-americano que se pode observar na esquerda não pode nunca ser confundido com uma postura pró jihad nem ser tomado como uma posição de desculpabilização dos atos terroristas cometidos por um grupo islamo-fascista. A postura do verdadeiro anti-terrorismo de esquerda obriga à imediata condenação tanto do ISIS como do estado americano. Jamais se pode compactuar com a postura hipócrita e cínica liberal, que criou e alimentou uma tensão política e social de tal forma que agora não tem maneira de o resolver, nem com os atos bárbaros e selvagens de um grupo criminoso por muito ressentimento que o esteja a motivar.
Neste tema, a direita fixa-se na masturbação intelectual do período da Guerra Fria condenando qualquer crítica ao "perfeito" sistema democrático liberal, seguindo religiosamente um Fim da História que nem o próprio Fukuyama ainda acredita. Mas é preciso acabar com esta falsa dualidade. Essa guerra não é nossa. Não no sentido em que não temos que trabalhar para resolver o conflito, mas no sentido em que o trabalho para a resolução passa precisamente pela crítica aberta às duas frentes e aos dois tipos de fanatismo. O pensamento crítico não é um valor americano, nem a liberdade de expressão, muito menos os direitos humanos. Não há países salvadores da humanidade que sintam que podem bater a porta de todos os parlamentos para vender a "democracia". Nem pode haver grupos que se desresponsabilizam da sua condição humana e do seu elo de ligação com o Outro em nome de uma religião.
Não podemos deixar que se caia em discursos mccarthystas nem em visões limitadas das tensões políticas. Porque apesar de acreditar no direito à auto-determinação dos povos, não confio nestes dois estados auto-proclamados.

domingo, 1 de março de 2015

Será possível pensar numa sociedade não repressiva?

Segundo Herbert Marcuse, a sociedade capitalista deu o seu passo fundamental quando o Princípio de Desempenho (o princípio de maximizar o contributo de cada um de acordo com a divisão do trabalho) se tornou no Princípio de Realidade (o sistema ou quadro de valores de referência para uma sociedade). Este Princípio de Desempenho, para funcionar na forma adequada, parte de uma repressão do Princípio de Prazer, presente nos nossos instintos. Esta repressão não afecta o mundo das fantasias, mas interfere com a nossa percepção consciente e inconsciente da realidade e com a nossa construção moral. Desta forma, a repressão dos instintos é um princípio fundamental para o desenvolvimento do Princípio de Desempenho. Este, na sua forma óptima de funcionamento, perpetua a máquina capitalista e cimenta o lugar de poder e influência da classe dominante. Esta repressão surge como a resposta para o funcionamento civilizado da comunidade, sob pena da desagregação do tecido social. Contudo, os instintos só surgem como desagregadores do Princípio de Realidade quando este é o Princípio de Desempenho e porque foram submetidos, desde o nascimento do indivíduo, a uma repressão, originando assim a tensão entre os desejos inconscientes e as exigências da sociedade, a famosa tensão freudiana do id e supereu. Para Freud, esta relação antagónica era perpétua e inerente a qualquer sociedade.
Será então possível construir uma sociedade não repressiva?
A questão deve ser reflectida de forma séria. Foi primeiramente colocada e aprofundada pela Escola de Frankfurt, e há um argumento que me leva a querer colocá-la, pondo em causa a premissa de Freud: a repressão só se dá aquando o nascimento do indivíduo, isto é, só acontece quando este é exposto ao Princípio de Realidade vigente. A tensão não é inerente a qualquer ser humano, é resultado do antagonismo entre o Princípio de Desempenho em si e o Princípio de Prazer, devido à repressão que necessita de aplicar para o funcionamento da sociedade tal como a conhecemos. Assim, abre-se caminho para a discussão sobre a veracidade do carácter inultrapassável da tensão supereu-id e para a discussão sobre a possibilidade (mas não probabilidade) de construção de uma sociedade em que esta tensão foi resolvida.
Dentro da Escola de Frankfurt, há quem defenda esta possibilidade e por isso se afasta de Freud. Mas também há quem rejeite esta ideia, considerando que a premissa de um antagonismo inultrapassável entre o supereu e o id deve ser tomada como verdadeira. A minha posição situa-se entre os dois pólos, tentando conciliar algumas ideias de Erich Fromm (defensor de que uma alteração na estrutura da sociedade poderia originar um alívio da tensão) e Slavoj Zizek (defensor do retorno ao pensamento lacaniano que defende os pressupostos freudianos).
Como?
Tal como já referi no meu outro texto, uma auto-reflexão profunda, que recupere a soberania do indivíduo na construção da sua identidade e da sua rede simbólica, dá o primeiro passo para uma auto-análise dos próprios instintos e repressões sofridas do exterior. Esta capacidade de auto-análise permite a superação de sentimentos de culpa, de desejos insatisfeitos, de complexos de inferioridade causados pela repressão, integrando o inconsciente no consciente, permitindo a reflexão racional e consciente do indivíduo sem descartar as emoções e a estrutura simbólica da nossa realidade. Esta soberania é o que permite fazer o julgamento completo (defendido por Adorno, julgamento que incorpora a Emoção e a Razão) livre de grande parte da repressão exógena.
Por sua vez, é também esta auto-análise que permite uma participação consciencializada em projectos de acção política que procurem anular a repressão. A ausência de repressão só pode ser discutida, como projecto para lá da utopia, quando a própria repressão for totalmente compreendida por cada indivíduo. Retomando os termos marxistas, quando houver uma consciencialização. O que Marx não sabia, nem podia saber na altura, é que hoje a complexidade da alienação não se limita ao desconhecimento dos mecanismos de dominação por parte da classe burguesa. A alienação de hoje passa pela própria aceitação.
O passo para esta consciencialização e subsequente superação da repressão é o passo que temos que dar hoje. Todos e cada um.