sexta-feira, 8 de julho de 2016

A religiosidade científica.


O surgimento em força da ciência dá-se com a incapacidade da humanidade em continuar a encontrar respostas no cosmos. Nesse momento, vira-se para o que está à sua volta, e torna-se então claro que as respostas estão bem mais próximas do que se pensava. É no corpo humano, na natureza, na história ou nas leis da física, neste emaranhado de factos e fenómenos, que irá procurar as verdades que por aí se escondem. O ser humano ilumina-se então, encontrando através da razão a devida racionalidade das coisas, aproximando-se passo a passo, lei a lei, teoria a teoria do funcionamento real das coisas, e mais; do seu devir existencial. Hoje, o homem comum agradece ao legado de formas inteligentes de atingir as verdades, vendo nos crentes meros anacronismos e anomalias da modernidade. Afinal, através da ciência, conseguiremos um dia criar a cura definitiva para o cancro, perceber exactamente como funciona o universo ou até perceber as causas e consequências de dado comportamento mental ou emocional de indivíduos que fogem à santa norma que é a sanidade. Santa não, porque só um idiota poderia acreditar que o nosso comportamento responde perante o divino. Responde antes pelas leis que a ciência, e apenas esta, pode esclarecer. Põe-se a questão: Será mesmo assim?

Seria de esperar que uma parte de mim concordasse. A ciência, o método científico, trouxeram sem dúvida algumas respostas a certos fenómenos. Sobretudo nas ciências chamadas exactas, mas não só, a ciência trouxe aquilo a que se chama regularmente de «progresso», por vezes apenas algum esclarecimento sobre questões antes intocáveis, sufocadas pelas mãos de Deus, outras vezes autênticas descobertas como o foram as leis da física. As ciências sociais trouxeram várias ideias e teorias importantes que por vezes dizemos corresponderem à realidade tal como ela é, mas que, acima de tudo, pusera-nos a pensar nos objectos sob os quais pairavam. Estas ciências já estiveram, aliás, numa situação menos agradável, em que cada resposta encontrada era tomada como um facto, uma inabalável realidade minuciosamente descoberta pela astúcia do sociólogo ou politólogo. Sem bons amigos como Karl Popper não sabemos se o marxismo e a psicanálise não seriam ainda consideradas como ciências puras, ou se o nosso cientista político ou sociólogo poderiam hoje trabalhar com o pressuposto de que as respostas que encontram são condicionadas pela estrutura da investigação – incluindo a pergunta que fazemos – ou a subjectividade inerente ao estudo. Não tenho ilusões – e, se tiver, deixem estar – mas parece-me que a ciência de hoje não é o mesmo diabo da do século XIX. Podemos comparar o que se diz incomparável e ver essas evoluções como equivalentes à de uma Reforma Protestante. Popper foi, na minha opinião, um pequeno Luther.

Não é, contudo, nenhum instrumento de verdades absolutas, e diz-se tão empírica como se dizia a religião, tornando-a absurda de uma forma similar. Parece que a ciência conseguiu inventar tanto quanto conseguiu descobrir, e manifesta uma obsessão pela norma, o normal, que é preocupante para quem consegue pensar para além do hoje e agora. A hiperatividade, o indivíduo hiperativo, é uma das manifestações dessa obsessão, das mais marcantes e óbvias, pelo que não é preciso ser-se Foucault ou Hacking para a perceber. Ian Hacking escreveu aliás coisas importantes sobre o tema. No seu texto "Formar Pessoas", nota como «motores de descoberta» tal a estatística não são apenas motores de descoberta, mas também motores para formar pessoas. A anomalia que consideramos ser as pessoas com personalidade múltipla, o «múltiplo», é um caso curioso. Vejamos a seguinte proposição do autor:

«Em 1955, esta não era uma maneira de se ser uma pessoa, as pessoas não se reconheciam a si próprias desta forma, não interagiam desta forma com os seus amigos, com as suas famílias (...); mas em 1985 esta era uma maneira de ser uma pessoa, de se reconhecer a si próprio, de viver em sociedade.»

Dito isto, será óbvio dizer-vos que o momento em que este fenómeno surge como um problema clínico mudou a vida dos «múltiplos», a conclusão sendo que a ciência os criou (ou iluminou) para os nossos olhos, e que os marginalizou, categorizou e transformou nos olhos deles. O autor atribui uma ordem racional pela qual se categorizam e formam pessoas. 1. Contar., 2. Quantificar, 3. Criar Normas, 4. Correlacionar, 5. Medicalizar, 6. Biologizar, 7. Geneticizar, 8. Normalizar, 9. Burocratizar e, finalmente, 10. Reclamar a nossa identidade: Os indivíduos tentam ganhar controlo sobre o seu destino, seja clínico para «anomalias» físicas ou emocionais, seja ao nível social; sim, será surpreendente para alguns descobrirem que os homossexuais eram alvos da clínica, que se tentava, na fase da "geneticização", encontrar o gene gay. A nossa cegueira científica leva-nos ainda, como exemplificou o autor, a ficar extremamente confusos quando o suicídio, associado à depressão, é feito por um terrorista que se «sacrifica» para matar. A ciência admite deixar erros residuais, hoje sabemos bem como nos atormentam. O terrorismo, claro, não é causado pela ciência, mas é ela, a base de verdade que nos fornece, o catalisador da nossa confusão. Não existe apenas uma causa para o suicídio. Aliás, não é preciso que exista uma sequer.

Há coisa de sete meses, conheci um estudante italiano que a dada altura me disse que estudava estatística. A minha reacção, traduzida numa qualquer expressão facial, foi aparentemente pouco discreta, e causada tanto por achar que há algo de heróico em querer estudar estatística como pelo desgosto que tenho em fazer uma cadeira de estatística. A esta reacção, e como se falasse para uma criança, ripostou: «Como podes não gostar de estatística?», apontou à nossa volta, «A estatística é a realidade!». Na altura, decidi que não valia a pena responder. Hoje, começo pelo mais óbvio, a estatística inferencial, a parte da estatística que tenta tirar conclusões sobre aquilo que conseguiu quantificar. Nesta parte, há uma enorme preocupação em encontrar a tendência, e, deduzindo-a, encontrar todas as partes de uma distribuição que não correspondem à tendência. São, por isso, anormais, fogem à norma. Isto pode ser aplicado a coisas simples, como a tendência das idades numa dada distribuição, e, infelizmente, para os efeitos que Ian Hacking (entre outros) demonstrou. A preocupação estatística não tem só coisas negativas, e é-nos extremamente útil no mundo que decidimos construir. Mas não há duvida de que é ela própria testemunha de algumas classificações impiedosas que fazemos a certos grupos de indivíduos.

 Há que pensar: A obsessão com as anomalias não é ela mesma uma anomalia humana? Não! Pior, uma anomalia criada apenas em dados espaços (ao início no ocidente) e em dados momentos? E quando procuramos tendências para formular leis e teorias, será que aquilo que foge à tendência não é uma parte importante do todo? O que interessa mais, a curva do modelo económico, ou antes todos os elementos que compõe essa curva? Para além da interpretação estatística, o próprio acto de quantificar revela uma especificidade da nossa forma de pensar. Não é, de facto, imperativo quantificar. Fazemo-lo porque queremos, porque achamos que nos leva às respostas que procuramos, mas as próprias respostas são o reflexo da forma como chegamos a elas. O «múltiplo» nasce da nossa busca por quem não esteja dentro da tendência comportamental.

A retórica científica começa a cansar os olhos. O excesso de informação, que embate violentamente contra mais informação, começa a revelar o quão a veracidade destas depende tanto da forma como ela é feita quanto de quem a aceita como verdadeira ou falsa. «Está cientificamente provado que...». Convive com o elitismo científico a banalização da ciência. Esta diz-se a salvação da mesma forma que a religião. São os cientistas e racionais contra os crentes e irracionais. No entanto, nunca pareceram mais próximos a ciência e a religião; ambas se querem rainhas da verdade, espelhos do absoluto e do empírico. Seguindo um método científico, quase sempre saberemos mais chegando ao fim do que sabíamos ao início – é inegável. Contudo a essência encontra-se em todos os erros, desvios e falhas da nossa investigação. Encontra-se também na perpetuação de relações de força, de imposição de poder. A estatística dá-nos as coordenadas da norma e do que lhe foge, a clínica corrige-a. A física, química ou matemática, das quais temos menos queixas por acharmos terem um certo grau de proximidade com a realidade, estão elas mesmas limitadas, e marginalizam à partida o uso de proposições e a capacidade especulativa. Génios como Einstein pareceram perceber isso, e aliaram à ciência a especulação. No entanto, estas últimas trazem sem dúvida muito mais de positivo do que de negativo. Aquilo que descobrem não será tanto o problema. Será antes o facto de reforçarem a retórica empirista da ciência. De termos homens tão inteligentes quanto banais como Neil DeGrasse Tyson a regurgitar estrume na televisão, a falsificar a história do ocidente ou do mundo muçulmano para chegar à conclusão de que os mais evoluídos são aqueles que gostam de ciência e não gostam de Deus.

Em suma, a ciência tem muito de benéfico. Aliás, tem tanto de benéfico que lentamente nos vamos esquecendo que ela não nos pode dar tudo, e que muitas vezes ela é prejudicial para o saber. Existe, nesse sentido, demasiado em comum entre a ciência e a religião. A racionalidade é uma solução, mas é também doentia. Chegámos ao ponto que Nietzsche temia: Os objectos de estudo estão a ser ofuscados pela forma como os estudamos.

Usemos a metáfora que, na República, Platão atribui a Sócrates. Diz ele que os homens que sempre viveram numa caverna iluminada apenas por uma fogueira só conhecem a sombra dos objectos que estão na caverna. A chama arde ao ponto de ofuscar a visão sobre os próprios objectos. Para estes homens, apenas a sombra dos objectos que a chama ajuda a projectar nas paredes da caverna é visível. Acreditam que as sombras são os objectos em si. Quanto a nós, possivelmente não conhecemos a forma dos objectos, mas sabemos o suficiente para perceber que a nossa dedução de que são as sombras está limitada pelas circunstâncias que nos rodeiam. O método científico – e sobretudo a retórica científica - é mais do que uma simples fogueira. A fogueira ilumina, e, tal como na metáfora, também engana. A nossa fogueira já se alastrou ao ponto de ser um incêndio. Não só engana, como começa a queimar a própria essência do saber. Afigura-se potencialmente como o suicídio do conhecimento humano. Deus já morreu. A racionalidade científica já se encontra em coma. E terá de entender que não é divina nem única se quiser sobreviver.

domingo, 17 de abril de 2016

Que loucura nos espera?

“Houve pessoas que julgaram que um rei podia fazer chover; nós dizemos que isso contradiz toda a experiência.
Hoje Julga-se que avião, rádio, etc. são meios de aproximação de povos e difusão de cultura.”
Ludwig Wittgenstein, 1949

  Aconteceu ter passado as últimas duas semanas em casa e, como tal, ter passado mais tempo no facebook do que havia feito nos últimos anos. Este excesso de tempo passado na rede social deu-me que pensar. Não planeio falar dos problemas mais convencionais – propriedade intelectual do conteúdo que colocamos nestes sites, a idade com que as pessoas os começam a utilizar, os problemas no trabalho que foram surgindo ao longo dos últimos anos, ou fenómenos como o cyberbullying. Interessa-me abordar outro lado da questão: já todos estivemos num café com amigos e, a certa altura, damos conta de que todos estamos no telemóvel, com grande probabilidade, numa rede social. Que fenómeno é este, que se vai tornando cada vez mais comum?
  Quando criamos e enriquecemos um perfil, projectamos uma imagem nossa num espaço virtual, de certa forma com a esperança (aqui, a frase “a esperança é a trela da submissão”, de Raoul Vanhaigen, aplica-se na perfeição) de que a rede a projecte de volta no real. Essa imagem transforma-se numa personagem na qual projectamos, premeditadamente, o melhor de nós – as nossas melhores fotografias, os nossos requintes, as nossas virtudes. O facebook é o mundo em que toda a gente é “bela”, o mais próximo da “perfeição” que consegue criar sobre si; ao desenvolvermos os nosso perfis, esperamos que essa “perfeição” regresse ao real, inviolada.
  O que nos vamos apercebendo é que não é essa imagem que regressa, mas o virtual em si que se intromete no real. No café, nas reuniões, nas conferências, nos parques, em todos os espaços de socialização, parece que a rede social vai lentamente substituindo o real social. Mais grave, parece-me, é a causa desse fenómeno: naqueles momentos antes de dormir, ao acordar, na pausa do estudo ou do trabalho, até quando vamos à casa-de-banho, que sempre foram espaços destinados ao convívio com nós próprios, passamo-los agora em rede. Que consequências terá essa substituição para o nosso auto-conhecimento, auto-estima, capacidade de lidarmos com os nossos problemas? Todas estas necessidades individuais passam a ser mediadas através de um ecrã. Torna-se mais evidente quando constatamos que em momentos de infelicidade ou tristeza o facebook se torna, na sua qualidade terapêutica, mais tentador.
  Com o tempo, também a forma de nos relacionarmos se altera. Se inicialmente a lógica do facebook era quase binária – “amigo”, ou não; gosto (ou não); partilho (ou não) – entrámos agora numa fase em que a própria plataforma se complexifica. Face a um post, a rede diz-nos que há seis tipos de reacções que podemos expressar: gostar, amar, rir, ficar impressionado, triste ou irritado. Numa conversa, surge um círculo que indica que a outra pessoa viu o que escrevemos, ao jeito de “a bola agora está do teu lado”. Com estes pequenos detalhes, a rede vai desenhado uma matriz de relacionamento. A sua matriz, que nos é imposta. Da mesma forma que nos relacionamos através dela, também a sua matriz se vai lentamente, creio, projectando em nós e influenciando a forma como comunicamos. A tentativa de recriar e agrupar em pequenos símbolos emoções tão complexas quanto as humanas é, no mínimo, perversa. Corresponde à ideologia do nosso tempo, a da substituição do qualitativo pelo quantitativo – embora hajam seis emoções possíveis a um post, logo são reagrupadas num número único de reacções, indiscriminadas na sua qualidade. Trata-se do fenómeno do hashtag ou dos vines – quanto vazio se consegue comprimir numa palavra, ou quanto nada se consegue expressar num vídeo de 6 segundos. Reduzimos o léxico, porque o pensamento está ele próprio mais reduzido. Também a solidez das nossas relações se vai reduzindo. Assim como o facto de quase todos usarmos as mesmas redes (aqui ou no Peru, com vinte ou cinquenta anos, exercendo a função de presidente da república ou agricultor) da mesma forma, fará apenas com que fiquemos mais iguais. Assustadoramente iguais.
  Até as nossas funções mais elementares, como a memória, são veiculadas pela rede – as nossas memórias visuais são, cada vez mais, as memórias que as fotografias das nossas redes contém.
  Por outro lado, os recentes atentados abriram um precedente perigoso – o facebook tenta, agora, tornar-se útil à organização social com a função “marcado seguro”. É uma função útil, e neste século tecnológico as soluções vão ser, cada vez mais, soluções em rede; mas temos que nos questionar – que perigo representa esta disponibilidade das redes sociais de se tornarem úteis, ou diria tendencialmente necessárias, à sociedade? Desejamos a presença, cada vez mais forte, de uma empresa cujas práticas no que toca à privacidade e propriedade intelectual são, no mínimo, duvidosas? Queremos que uma corporação, na qual não temos qualquer intervenção no processo de tomada de decisões, assuma um papel tendencialmente essencial à nossa vida?
  Estas redes gozam de uma vantagem muito clara – representam a tecnologia, o progresso, e o progresso não se questiona, aceita-se. Uso estas redes, como quase toda a gente, e insiro-me na maioria dos fenómenos que descrevi acima, mas não será altura de colocar questões sérias sobre as redes sociais e o efeito que têm na nossa mente, nas nossas relações, na nossa realidade?

  Em 2008 o facebook atingiu os 100 milhões de utilizadores; em 2014 metade da população portuguesa usava já um smartphone. Este aparelho é o mecanismo de alienação mais forte que alguma vez foi criado. Tratam-se de fenómenos recentes, mas é caso para dizer: que será feito das gerações que crescem, aprendem e se relacionam através destas plataformas? Se em menos de uma décadas chegamos a este ponto, onde estaremos, se não pusermos um travão a toda esta loucura, daqui a vinte anos? Que loucura nos espera?

quarta-feira, 9 de março de 2016

Feminismo, despolitização e interpassividade.

Tendo sido ontem celebrado o Dia da Mulher, pareceu-me relevante falar hoje de aquilo que se tem passado dentro da temática feminista nos últimos tempos. O livro "Elogio da Intolerância" publicado em 2004 pelo célebre filósofo esloveno Slavoj Zizek dá-nos aqui algumas ferramentas de análise interessantes mesmo não tendo analisado o caso do feminismo em particular. Feita a leitura do mesmo, tem-me intrigado cada vez mais a temática do feminismo renovado que emergiu ao longo dos últimos anos. Não se trata aqui de uma crítica aos tipos de feminismo mais tradicionais - como o marxista e o radical - mas antes de uma crítica frontal e sem escrúpulos ao feminismo que é agora conhecido de todos nós.

O livro centra-se numa crítica à nova ideologia dominante, sobretudo no mundo ocidental, que podemos associar a um certo centro alargado e tendencialmente liberal. Trata-se, para Zizek, de uma ideologia despolitizada e no entanto impregnada de multiculturalismo que ele vê como pouco autêntico e quase irónico. É também uma ideologia que se considera pós-ideológica, na forma como deixa para trás a velha dicotomia esquerda-direita. Assim, julga-se como uma nova forma de pensamento, transcendente a velhas disputas que o século passado provou serem pouco saudáveis, o que é, na minha opinião, um sintoma de uma ilusão de Fim da História da parte dos "pós-ideológicos". O multiculturalismo e as lutas identitárias - direitos queer, ecologia, defesa de minorias - são assim o resultado despolitizado de uma ideologia que aceita o destino capitalista enquanto o fim da estrada a nível sistémico, mas que não deixa, para já, outros assuntos por resolver. Interessa-nos reter que Zizek destrói o argumento de que alguém fazendo parte dessa nova ideologia se possa considerar como um indivíduo pós-ideológico, ou até despolitizado, pela simples razão de que uma ideologia é sempre auto-referencial. É por isso despolitizada, mas apenas até onde lhe parecer conveniente, e também fundamentalmente ideológica esta nova forma de (não) pensar a política e as lutas dela decorrentes.

A interpassividade refere-se, segundo Zizek, ou na verdade Lacan, ao oposto de interactividade. Enquanto a segunda é o resultado de interacção subjectiva entre duas (ou mais) partes, a interpassividade é o acto de uma das partes agir para que a outra se mantenha passiva. O exemplo clássico é o dos "risos pré-gravados" nas séries televisivas: A televisão "ri" por nós, representando a própria experiência passiva do espectador. Este último encontra-se agora incluído na série mas em estado passivo, ou seja, o seu papel de apreciação da piada é substituído anteriormente pela unidade activa da relação interpacífica. Para Zizek, as novas formas "pós-modernas" de política como as lutas identitárias de carácter pouco autêntico, e entre elas interessa-nos um certo feminismo, são o agente activo que permite a passividade de um outro agente, que seria, quem sabe, o da paixão pela discórdia política que visa um certo sistema económico global. Com o exemplo do relativo sucesso das reivindicações queer, Zizek nota que se realizou o que Judith Butler julgou impossível dentro do capitalismo que dependeria ele da estrutura familiar "tradicional": "A história do capitalismo não será a longa história da maneira através da qual a estrutura ideológico-política dominante se revelou capaz de conciliar (e de atenuar o carácter subversivo) dos movimentos e das exigências que pareciam ameaçar a sua própria sobrevivência?". Queers já estiveram mais longe dos seus objectivos, mas não terá sido por acaso.

Vade retro Zizek!

O feminismo de que falo pode ter vários nomes. O menos preciso de entres estes seria o de feminismo liberal (porque inclui palavreado e protestações que se enquadram na agenda da direita liberal), por isso seria antes preferível vê-lo como um auto-proclamado feminismo "pós-ideológico". Aliás, desde que a Beyoncé se tem começado a sentir como nova líder espiritual do feminismo, porque não chamar-lhe feminismo-pop? Bem vistas as coisas, pouco interessante será estarmos a distribuir nomes porque falamos todos de um objecto comum, nem que seja porque as redes sociais permitem uma produção e absorção fast-food sem precedentes do feminismo assim como de muitas outras ideias e movimentos.

Antes de mais, parece-me que este feminismo é de facto despolitizado, ou tenta ser, e é um dos agentes activos da interpassividade (pós-)política de hoje. Não se põem aqui em questão a verdade de que as sociedades contemporâneas são ainda, tendencialmente nuns aspectos e radicalmente noutros, de facto machistas, e parece-me até que ambos homens e mulheres - uns mais do que outros - ficam a perder com estas desigualdades, sem falar das vítimas sem voz que são os transsexuais. Precisamos de feminismo. O problema não é tanto o que se está a fazer. O problema é como e sobretudo porquê. Estas feministas conseguem lutar contra desigualdades de género ignorando desigualdades socioeconómicas que vinham fomentando e justificando as primeiras e muitos outros tipo de desigualdades - étnicas, sociais, etc. - sem um mínimo de preocupação em relação ao efeito contra-produtivo que isso poderá ter se e quando as reivindicações feministas vencerem. Para além das considerações sistémicas, é um feminismo que se corrompe e banaliza a si mesmo. Despido de política, despido de outros factores que o da relação homem-mulher ao nível artificial, é um feminismo minimalista, de intelecto reduzido e que nunca poderá discutir alguns dos problemas de raiz que criam as desigualdades de género. É, em suma, um feminismo que tenta dar uma resposta sem se fazer uma pergunta primeiro.

É ainda um feminismo que na minha opinião consegue ir para além da questão identitária interpassiva: Nas reivindicações identitárias pode ainda haver um "acordar" colectivo de todos os que pertencem a dada "classe" em luta, ora, parece-me que neste caso, aqueles e aquelas que a este feminismo se juntam fazem-no pela via individual, de limpeza de consciência, de forma a aderir de maneira superficial a um grupo que os coloca um pouco mais perto do grande politicamente correcto do progresso. É na minha opinião um tipo de grupo mais específico dentro dos grupos identitários pelo papel que dá à individualidade enquanto actor artificial, mas não vou esgotar o assunto aqui.

Infectado por redes-sociais e pop-stars que nunca se teriam interessado à causa em 1989, este feminismo foi por sua vez infectando algumas vozes do feminismo radical que considero mais "verdadeiro", sendo possível ver na página do The Guardian como feministas que antes se batiam com cabeça e caução agora se atiram de cabeça para a estupidez e provocação pura. Este é por fim, um feminismo auto-destrutivo por se deixar em campo aberto contra a maquinaria machista banal e imbecil, e ainda mais contra a conservadora não imbecil. Vencerá? Julgo que sim. Mas a vitória que irá alcançar será não apenas artificial como estruturalmente frágil se e quando se manifestarem outras tendências machistas na sociedade, para além das desigualdades não encaradas neste feminismo desconexo dos problemas de raiz. Não será, em suma, uma vitória definitiva e isto por causa da sua natureza despolitizada e também interpassiva: Despolitizada por ser um feminismo oco, artificial e apenas reformista; interpassiva pois os fantasmas da estrutura familiar e os papeis dentro da mesma que outrora atormentavam o feminismo podem regressar. Pode o modo de produção capitalista sobreviver com um ponto de igualdade perfeita entre géneros?


Em termos hegelianos, se queremos que a antítese à tese que é a sociedade machista seja a do feminismo "pós-ideológico", então a síntese daí resultante será uma que deixará as mulheres que acham que atingiram a tão merecida igualdade à boca de uma nova realidade que será de uma ainda maior vulnerabilidade para as mesmas. E enquanto isso acontece, aquilo que realmente importa, como diz Zizek, ficará intacto.


segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Adam Smith, Darwin e a ética neoliberal - Da harmonia dos interesses à concorrência selvagem

              Escrevo este comentário em seguimento ao excelente post do Ricardo Henriques intitulado O Erro de Marx. Enquanto que o Ricardo procurou desmistificar os valores da esquerda obsoleta para que ela se possa desfazer do síndrome de Marx e assim evoluir enquanto força ideológica renovada, o comentário que se segue pretende atacar alguns dos valores centrais da ideologia neoliberal, partindo do pressuposto de que a interpretação dos pensadores neoliberais clássicos do contributo de Adam Smith estão incorrectas e desactualizadas. Para esse efeito, darei toda a atenção necessária ao evolucionismo de Darwin, mas irei também focar-me nas realidades económicas, sociais e demográficas que foram inviabilizando a teoria da harmonia dos interesses, sendo estas duas fontes, uma teórica e outra mecânica, os principais processos de inviabilização das economias neoliberais enquanto um todo.
             
             No seu livro, A Riqueza das Nações, Smith deu nascimento à escola do laissez-faire. Anteriormente tinha já chegado a outras conclusõesEstudando a sociedade, observou nela a existência de três classes: Aqueles que vivem de rendas, aqueles que vivem de salários e aqueles que vivem dos ganhos (earnings/profits). Afirmou também que os interesses destas três classes eram idênticos, ou seja, que seguiam todas um interesse comum - o interesse geral da sociedade. Havendo ou não uma consciência individual da harmonia destes interesses seria então uma questão secundária. Esse interesse estava baseado no interesse individual: Maximizando os seus ganhos, cada indivíduo faria o melhor de si mesmo. O indivíduo não  estaria assim disposto a servir o interesse público - sendo que até poderia não lhe acrescer valor nenhum - mas sim a servir-se a si mesmo. Assim sendo, se todos os indivíduos seguissem o seu próprio interesse, conseguiriam, a médio e longo prazo, melhorar a sociedade como um todo. Adam Smith chega assim a uma conclusão nascida das condições económicas e sociais vigentes na sua era: A Riqueza das Nações é uma reacção ao domínio do Estado e do regime nas vidas dos indivíduos. A Mão Invisível iria assim substituir o Estado para que a sociedade se pudesse melhorar, não havendo travão ao potencial dos indivíduos enquanto colectivo, nem do colectivo enquanto indivíduos.

        A harmonia dos interesses de Adam Smith, para além de ser uma reacção a um contexto social, fazia todo o sentido economicamente, aplicando-se perfeitamente à estrutura económica do século XVIII: Uma sociedade de pequenos produtores e comerciantes interessados em maximizar as suas trocas e ganhos. Era também uma sociedade em que a produção não implicava uma especialização muito aprofundada e em que havia mais interessados na maximização da produção do que na redistribuição da riqueza. 

     Enquanto que teoria do laissez-faire se encontrava ainda no laboratório pessoal de Smith, começaram a surgir invenções, tal como a máquina de vapor, que permitiriam a criação de indústrias gigantes, especializadas e sem fronteiras, e consequentemente de um maior proletariado mais direccionado para a redistribuição da riqueza. A invenção de Smith estava, pois, minada por outras invenções materiais. Uma vez concluída a criação das economias capitalistas, a harmonia dos interesses era agora mais normativa do que real: Quem sublinhava que existia ainda uma harmonia de interesses era a classe que estava preocupada em manter uma forma de dominância em relação aos trabalhadores. Enquanto que essa harmonia de interesses não existia realmente, a sua aparente existência devia-se ao crescimento da economia e da prosperidade sem precedentes. A contestação geral ainda não teria surgido porque a concorrência animalesca ainda não estava no ponto graças ao crescimento e expansão da economia, que davam lugar a novos sectores de produção, eliminando indirectamente a concorrência por sector. A questão das classes era ultrapassada pela introdução dos representantes das classes trabalhadoras no próprio mercado de bens. O capitalismo sobreviveu e bem durante esta fase inicial pela sua expansão e crescimento sectorial que parecia ter um potencial infinito.

     No entanto, rapidamente se sentiu o capitalismo a chegar aos seus limites, não ao nível do crescimento, mas do que ele representava tanto para os trabalhadores como para os empreendedores. Tínhamos chegado ao ponto em que a estrada tinha demasiados carros. Nas palavras de Karl Manheim, não é necessário controlar o fluxo do número de carros enquanto que este não excede a capacidade da estrada. O capitalismo, por força da sua expansão, chegou rapidamente a limitar a utopia liberal pela ferocidade da competição que tinha criado. Os escritos de Adam Smith serviam para economias pré-capitalistas, economias em transição para o capitalismo e economias na sua juventude capitalista. Depois disso, apenas servia para alimentar os estragos que viriam a causar. Assim, o sonho de que poderia haver uma harmonia eterna chegava ao seu fim. Segundo Dostoievski, o preço da eterna harmonia era demasiado elevado se implicasse o sofrimento dos inocentes.
    Nos finais do século XIX, o laissez-faire  ao nível internacional tinha beneficiado apenas  a Grã-Bretanha, deixando os restantes países em posições desiguais - facto que podemos associar à Alemanha dentro do Euro não racionalizado e indiferente face às desigualdades estruturais entre estados. Dentro da nova realidade económica, foi o evolucionismo de Darwin que permitiu justificar a nova harmonia de interesses. Ao nível da biologia, os mais fortes acabam por vencer os mais fracos. Esta mentalidade foi transplantada para a economia e o trabalho. Assim, a concorrência desmesurada, e portanto a destruição dos mais fracos, faz também parte da harmonia dos interesses. Não nos esqueçamos que o próprio Marx, no seu livro Theorien über den Mehrwert, disse que " o desenvolvimento da espécie (...) e por isso o desenvolvimento máximo do indivíduo, apenas se pode realizar ao longo do processo histórico onde certos indivíduos são sacrificados." Embora Marx teria certamente outra forma de ver o fim deste sacrifício, Darwin deixou uma marca clara através de todo o espectro ideológico. A marca do século. 

     A eliminação dos mais fracos é desde logo a faísca que transforma, sem que ninguém dê por isso, a harmonia dos interesses na concorrência selvagem e desmesurada, aplicando-se perfeitamente nas novas economias capitalistas, não apenas para justificar a dominância de uns sobre outros, mas também e sobretudo para maximizar o seu potencial de crescimento. Hoje, os resultados da concorrência selvagem levaram-nos ao crescimento das desigualdades entre indivíduos e regiões, à subordinação da política ao dinheiro e dos estados a empresas. Ao nível da política internacional, a insistência na harmonia dos interesses levou ao desastre utópico entre as duas guerras mundiais, alimentado por Woodrow Wilson e a SDN, que não entenderam que a harmonia dos interesses não servia para todos, e sobretudo não para os alemães, que tinham beneficiado muito das guerras em 1866 e 1870, e deixaram de lado políticas de poder (Power Politics) que poderiam ter evitado o desastre de 1939-1945. Nenhuma guerra se explica porque existe um maluco no poder de um estado. As guerras explicam-se mais pela inacção dos outros estados do que pela acção de um estado governado por um fanático.

   Com aquilo que sabemos hoje sobre a ideologia neoliberal, podemos concluir que os próprios neoliberais estão tentar aplicar uma utopia fora do seu tempo, sendo que Adam Smith desenhou uma teoria para a altura em que viveu. Seria como tentar aplicar a solução marxista num mundo hoje muito mais complexo. O génio de Smith não pode ser entendido por todos, e sobretudo não por aqueles que pretendem compreendê-lo. O evolucionismo de Darwin é uma realidade biológica. No entanto, tentamos aplicar uma verdade da natureza a uma realidade que é nossa, que podemos racionalizar e construir segundo aquilo que entendemos ser justo e exequível. A ética neoliberal baseia-se em valores nos quais acredito também, tal como a liberdade. Sou a favor de liberdade nos mercados, mas se ela se traduz em liberdade de nos esmagarmos uns aos outros é porque algo está errado. A liberdade não é empírica, deve também ela ser forjada e moldada segundo as necessidades e desejos que se apresentam. O neoliberalismo económico enquanto doutrina já falhou, agora vamos esperar pelas suas consequências.

   Citando Edward H. Carr: "O pensamento imaturo é essencialmente utópico e direccionado para um objectivo. O pensamento que rejeita o objectivo é o pensamento da velhice. O pensamento da maturidade associa o objectivo à observação e à análise"
   Vejo o pensamento neoliberal como o pensamento da imaturidade e da velhice. Mas nunca como o da maturidade.


terça-feira, 27 de outubro de 2015

O erro de Marx

Já muito tempo passou desde a minha última publicação no blogue. Não que tenha deixado de acreditar na importância da partilha de opiniões, antes pelo contrário, senti um imperativo de reflectir e estudar de forma mais profunda algumas matérias.
Karl Marx foi, para mim, dos filósofos que mais influenciou o estudo da sociedade e do seu funcionamento. Não apenas da capitalista, mas de como os homens se movem. Aquilo a que Karl Popper chama do economismo de Marx, a sua tese de que são as relações de natureza económica entre os humanos que em última instância definem as coordenadas da sua relação em sociedade. Mas, na minha modestíssima opinião, é precisamente aqui que reside um dos seus erros.
Theodor Adorno e Max Horkheimer, na sua obra conjunta "Dialéctica do Esclarecimento" definem o conceito da realidade social como totalidade, isto é, como um conjunto de diferentes factores, materiais e meta físicos. E devemos pegar na sua análise para poder corrigir a teoria marxista.
Uma vez que a atribuição de sentido pertence ao campo subjectivo de cada um, e que esse campo subjectivo, pela unicidade das suas vivências, é único e imprevisível, o impacto desta imprevisibilidade na atribuição de sentido é também ele imprevisível. A vontade de um grupo de indivíduos que se une por uma causa que seja transversal à sua condição social e que una pessoas de diferentes meios económicos pode, por exemplo, superar as relações económicas estabelecidas indirectamente entre si. A História, quando não é lida retroactivamente, está repleta de acontecimentos que surgiram por factores muito mais complexos que a simples vertente económica. As próprias condutas éticas e as diferentes percepções em relação à riqueza material entre as diferentes sociedades ocidentais europeias, e a própria variedade de concepções dentro de cada sociedade, demonstram que a atitude perante a solidariedade, a xenofobia, a família, a pobreza, dependem de muito mais factores que simplesmente a relação económica entre os indivíduos. Olhando para a situação de hoje, devemos, por exemplo, procurar entender os conflitos "Europa do Sul vs Europa do Norte" para além das questões económicas; como também devemos procurar entender os meandros psicológicos e sociológicos que levam a um crescimento do anti-comunismo na Europa de leste sem cair nas mesmas explicações simplistas acerca do impacto da sua economia mais lenta e menos modernizada ou do aparelho de Estado mais ou menos controlado por interesses particulares que não gera a qualidade de vida esperada depois da queda do socialismo.
Se queremos realmente compreender o funcionamento da sociedade devemos ser capazes de incluir no nosso estudo todos os factores de ordem qualitativa que nos influenciam e que nós próprios criamos para dar sentido à realidade. Temos de ser capazes de compreender a complexidade do universo subjectivo de cada indivíduo e a consequente complexidade das relações resultante desta subjectivização.
Concluindo, para sermos capazes de construir a sociedade pós-capitalista, a nova utopia da esquerda, temos de assumir a responsabilidade de sermos os mais críticos de Marx, de Lenine, de todas as experiências falhadas de socialismo real e de todas as abstracções teóricas que levaram a esquerda para o beco sem saída em que se encontra hoje.
Falar de "socialismo" sem antes condenar de vez os crimes cometidos por esse nome e sem assumir o falhanço é o acto mais ridículo e superficial que se pode ter. A esquerda tem de ser corajosa e intelectualmente honesta. Tem de ser capaz de assumir os seus erros e as limitações das interpretações anteriores do que deve ser a sociedade não-capitalista.
Se queremos levar o trabalho de Marx para a frente há que assumir e apontar os seus erros, corrigi-lo e honrar as suas limitações.  

domingo, 15 de março de 2015

Uma guerra que não é nossa

Se há equívoco que leva a desentendimentos de forma desnecessária e gratuita, é o equívoco dos falsos opostos.
Falo neste equívoco porque há um tema da atualidade que nos leva constantemente para discussões sem sentido onde se tomam posições automáticas sem reflexão. Falo da questão do ISIS e da intervenção dos E.U.A. no médio oriente. Este é um tema onde, muito mais à direita do que à esquerda, se tende a cometer o erro do "se não estás comigo, estás contra mim."
O sentimento anti-americano que se pode observar na esquerda não pode nunca ser confundido com uma postura pró jihad nem ser tomado como uma posição de desculpabilização dos atos terroristas cometidos por um grupo islamo-fascista. A postura do verdadeiro anti-terrorismo de esquerda obriga à imediata condenação tanto do ISIS como do estado americano. Jamais se pode compactuar com a postura hipócrita e cínica liberal, que criou e alimentou uma tensão política e social de tal forma que agora não tem maneira de o resolver, nem com os atos bárbaros e selvagens de um grupo criminoso por muito ressentimento que o esteja a motivar.
Neste tema, a direita fixa-se na masturbação intelectual do período da Guerra Fria condenando qualquer crítica ao "perfeito" sistema democrático liberal, seguindo religiosamente um Fim da História que nem o próprio Fukuyama ainda acredita. Mas é preciso acabar com esta falsa dualidade. Essa guerra não é nossa. Não no sentido em que não temos que trabalhar para resolver o conflito, mas no sentido em que o trabalho para a resolução passa precisamente pela crítica aberta às duas frentes e aos dois tipos de fanatismo. O pensamento crítico não é um valor americano, nem a liberdade de expressão, muito menos os direitos humanos. Não há países salvadores da humanidade que sintam que podem bater a porta de todos os parlamentos para vender a "democracia". Nem pode haver grupos que se desresponsabilizam da sua condição humana e do seu elo de ligação com o Outro em nome de uma religião.
Não podemos deixar que se caia em discursos mccarthystas nem em visões limitadas das tensões políticas. Porque apesar de acreditar no direito à auto-determinação dos povos, não confio nestes dois estados auto-proclamados.

domingo, 1 de março de 2015

Será possível pensar numa sociedade não repressiva?

Segundo Herbert Marcuse, a sociedade capitalista deu o seu passo fundamental quando o Princípio de Desempenho (o princípio de maximizar o contributo de cada um de acordo com a divisão do trabalho) se tornou no Princípio de Realidade (o sistema ou quadro de valores de referência para uma sociedade). Este Princípio de Desempenho, para funcionar na forma adequada, parte de uma repressão do Princípio de Prazer, presente nos nossos instintos. Esta repressão não afecta o mundo das fantasias, mas interfere com a nossa percepção consciente e inconsciente da realidade e com a nossa construção moral. Desta forma, a repressão dos instintos é um princípio fundamental para o desenvolvimento do Princípio de Desempenho. Este, na sua forma óptima de funcionamento, perpetua a máquina capitalista e cimenta o lugar de poder e influência da classe dominante. Esta repressão surge como a resposta para o funcionamento civilizado da comunidade, sob pena da desagregação do tecido social. Contudo, os instintos só surgem como desagregadores do Princípio de Realidade quando este é o Princípio de Desempenho e porque foram submetidos, desde o nascimento do indivíduo, a uma repressão, originando assim a tensão entre os desejos inconscientes e as exigências da sociedade, a famosa tensão freudiana do id e supereu. Para Freud, esta relação antagónica era perpétua e inerente a qualquer sociedade.
Será então possível construir uma sociedade não repressiva?
A questão deve ser reflectida de forma séria. Foi primeiramente colocada e aprofundada pela Escola de Frankfurt, e há um argumento que me leva a querer colocá-la, pondo em causa a premissa de Freud: a repressão só se dá aquando o nascimento do indivíduo, isto é, só acontece quando este é exposto ao Princípio de Realidade vigente. A tensão não é inerente a qualquer ser humano, é resultado do antagonismo entre o Princípio de Desempenho em si e o Princípio de Prazer, devido à repressão que necessita de aplicar para o funcionamento da sociedade tal como a conhecemos. Assim, abre-se caminho para a discussão sobre a veracidade do carácter inultrapassável da tensão supereu-id e para a discussão sobre a possibilidade (mas não probabilidade) de construção de uma sociedade em que esta tensão foi resolvida.
Dentro da Escola de Frankfurt, há quem defenda esta possibilidade e por isso se afasta de Freud. Mas também há quem rejeite esta ideia, considerando que a premissa de um antagonismo inultrapassável entre o supereu e o id deve ser tomada como verdadeira. A minha posição situa-se entre os dois pólos, tentando conciliar algumas ideias de Erich Fromm (defensor de que uma alteração na estrutura da sociedade poderia originar um alívio da tensão) e Slavoj Zizek (defensor do retorno ao pensamento lacaniano que defende os pressupostos freudianos).
Como?
Tal como já referi no meu outro texto, uma auto-reflexão profunda, que recupere a soberania do indivíduo na construção da sua identidade e da sua rede simbólica, dá o primeiro passo para uma auto-análise dos próprios instintos e repressões sofridas do exterior. Esta capacidade de auto-análise permite a superação de sentimentos de culpa, de desejos insatisfeitos, de complexos de inferioridade causados pela repressão, integrando o inconsciente no consciente, permitindo a reflexão racional e consciente do indivíduo sem descartar as emoções e a estrutura simbólica da nossa realidade. Esta soberania é o que permite fazer o julgamento completo (defendido por Adorno, julgamento que incorpora a Emoção e a Razão) livre de grande parte da repressão exógena.
Por sua vez, é também esta auto-análise que permite uma participação consciencializada em projectos de acção política que procurem anular a repressão. A ausência de repressão só pode ser discutida, como projecto para lá da utopia, quando a própria repressão for totalmente compreendida por cada indivíduo. Retomando os termos marxistas, quando houver uma consciencialização. O que Marx não sabia, nem podia saber na altura, é que hoje a complexidade da alienação não se limita ao desconhecimento dos mecanismos de dominação por parte da classe burguesa. A alienação de hoje passa pela própria aceitação.
O passo para esta consciencialização e subsequente superação da repressão é o passo que temos que dar hoje. Todos e cada um.