O surgimento em força da
ciência dá-se com a incapacidade da humanidade em continuar a
encontrar respostas no cosmos. Nesse momento, vira-se para o que está
à sua volta, e torna-se então claro que as respostas estão bem
mais próximas do que se pensava. É no corpo humano, na natureza, na
história ou nas leis da física, neste emaranhado de factos e
fenómenos, que irá procurar as verdades que por aí se escondem. O
ser humano ilumina-se então, encontrando através da razão a devida
racionalidade das coisas, aproximando-se passo a passo, lei a lei,
teoria a teoria do funcionamento real das coisas, e mais; do seu
devir existencial. Hoje, o homem comum agradece ao legado de formas
inteligentes de atingir as verdades, vendo nos crentes meros
anacronismos e anomalias da modernidade. Afinal, através da ciência,
conseguiremos um dia criar a cura definitiva para o cancro, perceber
exactamente como funciona o universo ou até perceber as causas e
consequências de dado comportamento mental ou emocional de
indivíduos que fogem à santa norma que é a sanidade. Santa não,
porque só um idiota poderia acreditar que o nosso comportamento
responde perante o divino. Responde antes pelas leis que a ciência,
e apenas esta, pode esclarecer. Põe-se a questão: Será mesmo
assim?
Seria de esperar que uma
parte de mim concordasse. A ciência, o método científico,
trouxeram sem dúvida algumas respostas a certos fenómenos.
Sobretudo nas ciências chamadas exactas, mas não só, a ciência
trouxe aquilo a que se chama regularmente de «progresso», por vezes
apenas algum esclarecimento sobre questões antes intocáveis,
sufocadas pelas mãos de Deus, outras vezes autênticas descobertas
como o foram as leis da física. As ciências sociais trouxeram
várias ideias e teorias importantes que por vezes dizemos
corresponderem à realidade tal como ela é, mas que, acima de tudo,
pusera-nos a pensar nos objectos sob os quais pairavam. Estas
ciências já estiveram, aliás, numa situação menos agradável, em
que cada resposta encontrada era tomada como um facto, uma inabalável
realidade minuciosamente descoberta pela astúcia do sociólogo ou
politólogo. Sem bons amigos como Karl Popper não sabemos se o
marxismo e a psicanálise não seriam ainda consideradas como
ciências puras, ou se o nosso cientista político ou sociólogo
poderiam hoje trabalhar com o pressuposto de que as respostas que
encontram são condicionadas pela estrutura da investigação –
incluindo a pergunta que fazemos – ou a subjectividade inerente ao
estudo. Não tenho ilusões – e, se tiver, deixem estar – mas
parece-me que a ciência de hoje não é o mesmo diabo da do século
XIX. Podemos comparar o que se diz incomparável e ver essas
evoluções como equivalentes à de uma Reforma Protestante. Popper
foi, na minha opinião, um pequeno Luther.
Não é, contudo, nenhum
instrumento de verdades absolutas, e diz-se tão empírica como se
dizia a religião, tornando-a absurda de uma forma similar. Parece
que a ciência conseguiu inventar tanto quanto conseguiu descobrir, e
manifesta uma obsessão pela norma, o normal, que é preocupante para
quem consegue pensar para além do hoje e agora. A hiperatividade, o
indivíduo hiperativo, é uma das manifestações dessa obsessão,
das mais marcantes e óbvias, pelo que não é preciso ser-se
Foucault ou Hacking para a perceber. Ian Hacking escreveu aliás
coisas importantes sobre o tema. No seu texto "Formar Pessoas", nota como «motores de descoberta» tal a estatística não
são apenas motores de descoberta, mas também motores para formar
pessoas. A anomalia que consideramos ser as pessoas com personalidade
múltipla, o «múltiplo», é um caso curioso. Vejamos a seguinte
proposição do autor:
«Em 1955, esta não era
uma maneira de se ser uma pessoa, as pessoas não se reconheciam a si
próprias desta forma, não interagiam desta forma com os seus
amigos, com as suas famílias (...); mas em 1985 esta era uma maneira
de ser uma pessoa, de se reconhecer a si próprio, de viver em
sociedade.»
Dito isto, será óbvio
dizer-vos que o momento em que este fenómeno surge como um problema
clínico mudou a vida dos «múltiplos», a conclusão sendo que a
ciência os criou (ou iluminou) para os nossos olhos, e que os
marginalizou, categorizou e transformou nos olhos deles. O autor
atribui uma ordem racional pela qual se categorizam e formam pessoas.
1. Contar., 2. Quantificar, 3. Criar Normas, 4. Correlacionar, 5.
Medicalizar, 6. Biologizar, 7. Geneticizar, 8. Normalizar, 9.
Burocratizar e, finalmente, 10. Reclamar a nossa identidade: Os
indivíduos tentam ganhar controlo sobre o seu destino, seja clínico
para «anomalias» físicas ou emocionais, seja ao nível social;
sim, será surpreendente para alguns descobrirem que os homossexuais
eram alvos da clínica, que se tentava, na fase da "geneticização",
encontrar o gene gay. A nossa cegueira científica leva-nos ainda, como
exemplificou o autor, a ficar extremamente confusos quando o
suicídio, associado à depressão, é feito por um terrorista que se
«sacrifica» para matar. A ciência admite deixar erros residuais,
hoje sabemos bem como nos atormentam. O terrorismo, claro, não é
causado pela ciência, mas é ela, a base de verdade que nos fornece,
o catalisador da nossa confusão. Não existe apenas uma causa para o
suicídio. Aliás, não é preciso que exista uma sequer.
Há coisa de sete meses,
conheci um estudante italiano que a dada altura me disse que estudava
estatística. A minha reacção, traduzida numa qualquer expressão
facial, foi aparentemente pouco discreta, e causada tanto por achar
que há algo de heróico em querer estudar estatística como pelo
desgosto que tenho em fazer uma cadeira de estatística. A esta
reacção, e como se falasse para uma criança, ripostou: «Como
podes não gostar de estatística?», apontou à nossa volta, «A
estatística é a realidade!». Na altura, decidi que não valia a
pena responder. Hoje, começo pelo mais óbvio, a estatística
inferencial, a parte da estatística que tenta tirar conclusões
sobre aquilo que conseguiu quantificar. Nesta parte, há uma enorme
preocupação em encontrar a tendência, e, deduzindo-a, encontrar
todas as partes de uma distribuição que não correspondem à
tendência. São, por isso, anormais, fogem à norma. Isto pode ser
aplicado a coisas simples, como a tendência das idades numa dada
distribuição, e, infelizmente, para os efeitos que Ian Hacking
(entre outros) demonstrou. A preocupação estatística não tem só
coisas negativas, e é-nos extremamente útil no mundo que decidimos
construir. Mas não há duvida de que é ela própria testemunha de
algumas classificações impiedosas que fazemos a certos grupos de
indivíduos.
Há que pensar: A obsessão com as anomalias não é ela mesma uma anomalia humana? Não! Pior, uma anomalia criada apenas em dados espaços (ao início no ocidente) e em dados momentos? E quando procuramos tendências para formular leis e teorias, será que aquilo que foge à tendência não é uma parte importante do todo? O que interessa mais, a curva do modelo económico, ou antes todos os elementos que compõe essa curva? Para além da interpretação estatística, o próprio acto de quantificar revela uma especificidade da nossa forma de pensar. Não é, de facto, imperativo quantificar. Fazemo-lo porque queremos, porque achamos que nos leva às respostas que procuramos, mas as próprias respostas são o reflexo da forma como chegamos a elas. O «múltiplo» nasce da nossa busca por quem não esteja dentro da tendência comportamental.
Há que pensar: A obsessão com as anomalias não é ela mesma uma anomalia humana? Não! Pior, uma anomalia criada apenas em dados espaços (ao início no ocidente) e em dados momentos? E quando procuramos tendências para formular leis e teorias, será que aquilo que foge à tendência não é uma parte importante do todo? O que interessa mais, a curva do modelo económico, ou antes todos os elementos que compõe essa curva? Para além da interpretação estatística, o próprio acto de quantificar revela uma especificidade da nossa forma de pensar. Não é, de facto, imperativo quantificar. Fazemo-lo porque queremos, porque achamos que nos leva às respostas que procuramos, mas as próprias respostas são o reflexo da forma como chegamos a elas. O «múltiplo» nasce da nossa busca por quem não esteja dentro da tendência comportamental.
A retórica científica
começa a cansar os olhos. O excesso de informação, que embate
violentamente contra mais informação, começa a revelar o quão a
veracidade destas depende tanto da forma como ela é feita quanto de
quem a aceita como verdadeira ou falsa. «Está cientificamente
provado que...». Convive com o elitismo científico a banalização
da ciência. Esta diz-se a salvação da mesma forma que a religião.
São os cientistas e racionais contra os crentes e irracionais. No
entanto, nunca pareceram mais próximos a ciência e a religião;
ambas se querem rainhas da verdade, espelhos do absoluto e do
empírico. Seguindo um método científico, quase sempre saberemos
mais chegando ao fim do que sabíamos ao início – é inegável.
Contudo a essência encontra-se em todos os erros, desvios e falhas
da nossa investigação. Encontra-se também na perpetuação de
relações de força, de imposição de poder. A estatística dá-nos
as coordenadas da norma e do que lhe foge, a clínica corrige-a. A
física, química ou matemática, das quais temos menos queixas por
acharmos terem um certo grau de proximidade com a realidade, estão
elas mesmas limitadas, e marginalizam à partida o uso de proposições
e a capacidade especulativa. Génios como Einstein pareceram perceber
isso, e aliaram à ciência a especulação. No entanto, estas
últimas trazem sem dúvida muito mais de positivo do que de
negativo. Aquilo que descobrem não será tanto o problema. Será
antes o facto de reforçarem a retórica empirista da ciência. De
termos homens tão inteligentes quanto banais como Neil DeGrasse Tyson a
regurgitar estrume na televisão, a falsificar a história do
ocidente ou do mundo muçulmano para chegar à conclusão de que os
mais evoluídos são aqueles que gostam de ciência e não gostam de
Deus.
Em suma, a ciência tem
muito de benéfico. Aliás, tem tanto de benéfico que lentamente nos
vamos esquecendo que ela não nos pode dar tudo, e que muitas vezes
ela é prejudicial para o saber. Existe, nesse sentido, demasiado em
comum entre a ciência e a religião. A racionalidade é uma solução,
mas é também doentia. Chegámos ao ponto que Nietzsche temia: Os
objectos de estudo estão a ser ofuscados pela forma como os
estudamos.
Usemos a metáfora que,
na República, Platão atribui a Sócrates. Diz ele que os homens que
sempre viveram numa caverna iluminada apenas por uma fogueira só
conhecem a sombra dos objectos que estão na caverna. A chama arde ao
ponto de ofuscar a visão sobre os próprios objectos. Para estes
homens, apenas a sombra dos objectos que a chama ajuda a projectar
nas paredes da caverna é visível. Acreditam que as sombras são os
objectos em si. Quanto a nós, possivelmente não conhecemos a forma
dos objectos, mas sabemos o suficiente para perceber que a nossa
dedução de que são as sombras está limitada pelas circunstâncias
que nos rodeiam. O método científico – e sobretudo a retórica
científica - é mais do que uma simples fogueira. A fogueira
ilumina, e, tal como na metáfora, também engana. A nossa fogueira
já se alastrou ao ponto de ser um incêndio. Não só engana, como
começa a queimar a própria essência do saber. Afigura-se
potencialmente como o suicídio do conhecimento humano. Deus já
morreu. A racionalidade científica já se encontra em coma. E terá
de entender que não é divina nem única se quiser sobreviver.