quarta-feira, 9 de março de 2016

Feminismo, despolitização e interpassividade.

Tendo sido ontem celebrado o Dia da Mulher, pareceu-me relevante falar hoje de aquilo que se tem passado dentro da temática feminista nos últimos tempos. O livro "Elogio da Intolerância" publicado em 2004 pelo célebre filósofo esloveno Slavoj Zizek dá-nos aqui algumas ferramentas de análise interessantes mesmo não tendo analisado o caso do feminismo em particular. Feita a leitura do mesmo, tem-me intrigado cada vez mais a temática do feminismo renovado que emergiu ao longo dos últimos anos. Não se trata aqui de uma crítica aos tipos de feminismo mais tradicionais - como o marxista e o radical - mas antes de uma crítica frontal e sem escrúpulos ao feminismo que é agora conhecido de todos nós.

O livro centra-se numa crítica à nova ideologia dominante, sobretudo no mundo ocidental, que podemos associar a um certo centro alargado e tendencialmente liberal. Trata-se, para Zizek, de uma ideologia despolitizada e no entanto impregnada de multiculturalismo que ele vê como pouco autêntico e quase irónico. É também uma ideologia que se considera pós-ideológica, na forma como deixa para trás a velha dicotomia esquerda-direita. Assim, julga-se como uma nova forma de pensamento, transcendente a velhas disputas que o século passado provou serem pouco saudáveis, o que é, na minha opinião, um sintoma de uma ilusão de Fim da História da parte dos "pós-ideológicos". O multiculturalismo e as lutas identitárias - direitos queer, ecologia, defesa de minorias - são assim o resultado despolitizado de uma ideologia que aceita o destino capitalista enquanto o fim da estrada a nível sistémico, mas que não deixa, para já, outros assuntos por resolver. Interessa-nos reter que Zizek destrói o argumento de que alguém fazendo parte dessa nova ideologia se possa considerar como um indivíduo pós-ideológico, ou até despolitizado, pela simples razão de que uma ideologia é sempre auto-referencial. É por isso despolitizada, mas apenas até onde lhe parecer conveniente, e também fundamentalmente ideológica esta nova forma de (não) pensar a política e as lutas dela decorrentes.

A interpassividade refere-se, segundo Zizek, ou na verdade Lacan, ao oposto de interactividade. Enquanto a segunda é o resultado de interacção subjectiva entre duas (ou mais) partes, a interpassividade é o acto de uma das partes agir para que a outra se mantenha passiva. O exemplo clássico é o dos "risos pré-gravados" nas séries televisivas: A televisão "ri" por nós, representando a própria experiência passiva do espectador. Este último encontra-se agora incluído na série mas em estado passivo, ou seja, o seu papel de apreciação da piada é substituído anteriormente pela unidade activa da relação interpacífica. Para Zizek, as novas formas "pós-modernas" de política como as lutas identitárias de carácter pouco autêntico, e entre elas interessa-nos um certo feminismo, são o agente activo que permite a passividade de um outro agente, que seria, quem sabe, o da paixão pela discórdia política que visa um certo sistema económico global. Com o exemplo do relativo sucesso das reivindicações queer, Zizek nota que se realizou o que Judith Butler julgou impossível dentro do capitalismo que dependeria ele da estrutura familiar "tradicional": "A história do capitalismo não será a longa história da maneira através da qual a estrutura ideológico-política dominante se revelou capaz de conciliar (e de atenuar o carácter subversivo) dos movimentos e das exigências que pareciam ameaçar a sua própria sobrevivência?". Queers já estiveram mais longe dos seus objectivos, mas não terá sido por acaso.

Vade retro Zizek!

O feminismo de que falo pode ter vários nomes. O menos preciso de entres estes seria o de feminismo liberal (porque inclui palavreado e protestações que se enquadram na agenda da direita liberal), por isso seria antes preferível vê-lo como um auto-proclamado feminismo "pós-ideológico". Aliás, desde que a Beyoncé se tem começado a sentir como nova líder espiritual do feminismo, porque não chamar-lhe feminismo-pop? Bem vistas as coisas, pouco interessante será estarmos a distribuir nomes porque falamos todos de um objecto comum, nem que seja porque as redes sociais permitem uma produção e absorção fast-food sem precedentes do feminismo assim como de muitas outras ideias e movimentos.

Antes de mais, parece-me que este feminismo é de facto despolitizado, ou tenta ser, e é um dos agentes activos da interpassividade (pós-)política de hoje. Não se põem aqui em questão a verdade de que as sociedades contemporâneas são ainda, tendencialmente nuns aspectos e radicalmente noutros, de facto machistas, e parece-me até que ambos homens e mulheres - uns mais do que outros - ficam a perder com estas desigualdades, sem falar das vítimas sem voz que são os transsexuais. Precisamos de feminismo. O problema não é tanto o que se está a fazer. O problema é como e sobretudo porquê. Estas feministas conseguem lutar contra desigualdades de género ignorando desigualdades socioeconómicas que vinham fomentando e justificando as primeiras e muitos outros tipo de desigualdades - étnicas, sociais, etc. - sem um mínimo de preocupação em relação ao efeito contra-produtivo que isso poderá ter se e quando as reivindicações feministas vencerem. Para além das considerações sistémicas, é um feminismo que se corrompe e banaliza a si mesmo. Despido de política, despido de outros factores que o da relação homem-mulher ao nível artificial, é um feminismo minimalista, de intelecto reduzido e que nunca poderá discutir alguns dos problemas de raiz que criam as desigualdades de género. É, em suma, um feminismo que tenta dar uma resposta sem se fazer uma pergunta primeiro.

É ainda um feminismo que na minha opinião consegue ir para além da questão identitária interpassiva: Nas reivindicações identitárias pode ainda haver um "acordar" colectivo de todos os que pertencem a dada "classe" em luta, ora, parece-me que neste caso, aqueles e aquelas que a este feminismo se juntam fazem-no pela via individual, de limpeza de consciência, de forma a aderir de maneira superficial a um grupo que os coloca um pouco mais perto do grande politicamente correcto do progresso. É na minha opinião um tipo de grupo mais específico dentro dos grupos identitários pelo papel que dá à individualidade enquanto actor artificial, mas não vou esgotar o assunto aqui.

Infectado por redes-sociais e pop-stars que nunca se teriam interessado à causa em 1989, este feminismo foi por sua vez infectando algumas vozes do feminismo radical que considero mais "verdadeiro", sendo possível ver na página do The Guardian como feministas que antes se batiam com cabeça e caução agora se atiram de cabeça para a estupidez e provocação pura. Este é por fim, um feminismo auto-destrutivo por se deixar em campo aberto contra a maquinaria machista banal e imbecil, e ainda mais contra a conservadora não imbecil. Vencerá? Julgo que sim. Mas a vitória que irá alcançar será não apenas artificial como estruturalmente frágil se e quando se manifestarem outras tendências machistas na sociedade, para além das desigualdades não encaradas neste feminismo desconexo dos problemas de raiz. Não será, em suma, uma vitória definitiva e isto por causa da sua natureza despolitizada e também interpassiva: Despolitizada por ser um feminismo oco, artificial e apenas reformista; interpassiva pois os fantasmas da estrutura familiar e os papeis dentro da mesma que outrora atormentavam o feminismo podem regressar. Pode o modo de produção capitalista sobreviver com um ponto de igualdade perfeita entre géneros?


Em termos hegelianos, se queremos que a antítese à tese que é a sociedade machista seja a do feminismo "pós-ideológico", então a síntese daí resultante será uma que deixará as mulheres que acham que atingiram a tão merecida igualdade à boca de uma nova realidade que será de uma ainda maior vulnerabilidade para as mesmas. E enquanto isso acontece, aquilo que realmente importa, como diz Zizek, ficará intacto.