domingo, 1 de março de 2015

Será possível pensar numa sociedade não repressiva?

Segundo Herbert Marcuse, a sociedade capitalista deu o seu passo fundamental quando o Princípio de Desempenho (o princípio de maximizar o contributo de cada um de acordo com a divisão do trabalho) se tornou no Princípio de Realidade (o sistema ou quadro de valores de referência para uma sociedade). Este Princípio de Desempenho, para funcionar na forma adequada, parte de uma repressão do Princípio de Prazer, presente nos nossos instintos. Esta repressão não afecta o mundo das fantasias, mas interfere com a nossa percepção consciente e inconsciente da realidade e com a nossa construção moral. Desta forma, a repressão dos instintos é um princípio fundamental para o desenvolvimento do Princípio de Desempenho. Este, na sua forma óptima de funcionamento, perpetua a máquina capitalista e cimenta o lugar de poder e influência da classe dominante. Esta repressão surge como a resposta para o funcionamento civilizado da comunidade, sob pena da desagregação do tecido social. Contudo, os instintos só surgem como desagregadores do Princípio de Realidade quando este é o Princípio de Desempenho e porque foram submetidos, desde o nascimento do indivíduo, a uma repressão, originando assim a tensão entre os desejos inconscientes e as exigências da sociedade, a famosa tensão freudiana do id e supereu. Para Freud, esta relação antagónica era perpétua e inerente a qualquer sociedade.
Será então possível construir uma sociedade não repressiva?
A questão deve ser reflectida de forma séria. Foi primeiramente colocada e aprofundada pela Escola de Frankfurt, e há um argumento que me leva a querer colocá-la, pondo em causa a premissa de Freud: a repressão só se dá aquando o nascimento do indivíduo, isto é, só acontece quando este é exposto ao Princípio de Realidade vigente. A tensão não é inerente a qualquer ser humano, é resultado do antagonismo entre o Princípio de Desempenho em si e o Princípio de Prazer, devido à repressão que necessita de aplicar para o funcionamento da sociedade tal como a conhecemos. Assim, abre-se caminho para a discussão sobre a veracidade do carácter inultrapassável da tensão supereu-id e para a discussão sobre a possibilidade (mas não probabilidade) de construção de uma sociedade em que esta tensão foi resolvida.
Dentro da Escola de Frankfurt, há quem defenda esta possibilidade e por isso se afasta de Freud. Mas também há quem rejeite esta ideia, considerando que a premissa de um antagonismo inultrapassável entre o supereu e o id deve ser tomada como verdadeira. A minha posição situa-se entre os dois pólos, tentando conciliar algumas ideias de Erich Fromm (defensor de que uma alteração na estrutura da sociedade poderia originar um alívio da tensão) e Slavoj Zizek (defensor do retorno ao pensamento lacaniano que defende os pressupostos freudianos).
Como?
Tal como já referi no meu outro texto, uma auto-reflexão profunda, que recupere a soberania do indivíduo na construção da sua identidade e da sua rede simbólica, dá o primeiro passo para uma auto-análise dos próprios instintos e repressões sofridas do exterior. Esta capacidade de auto-análise permite a superação de sentimentos de culpa, de desejos insatisfeitos, de complexos de inferioridade causados pela repressão, integrando o inconsciente no consciente, permitindo a reflexão racional e consciente do indivíduo sem descartar as emoções e a estrutura simbólica da nossa realidade. Esta soberania é o que permite fazer o julgamento completo (defendido por Adorno, julgamento que incorpora a Emoção e a Razão) livre de grande parte da repressão exógena.
Por sua vez, é também esta auto-análise que permite uma participação consciencializada em projectos de acção política que procurem anular a repressão. A ausência de repressão só pode ser discutida, como projecto para lá da utopia, quando a própria repressão for totalmente compreendida por cada indivíduo. Retomando os termos marxistas, quando houver uma consciencialização. O que Marx não sabia, nem podia saber na altura, é que hoje a complexidade da alienação não se limita ao desconhecimento dos mecanismos de dominação por parte da classe burguesa. A alienação de hoje passa pela própria aceitação.
O passo para esta consciencialização e subsequente superação da repressão é o passo que temos que dar hoje. Todos e cada um.

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