sexta-feira, 8 de julho de 2016

A religiosidade científica.


O surgimento em força da ciência dá-se com a incapacidade da humanidade em continuar a encontrar respostas no cosmos. Nesse momento, vira-se para o que está à sua volta, e torna-se então claro que as respostas estão bem mais próximas do que se pensava. É no corpo humano, na natureza, na história ou nas leis da física, neste emaranhado de factos e fenómenos, que irá procurar as verdades que por aí se escondem. O ser humano ilumina-se então, encontrando através da razão a devida racionalidade das coisas, aproximando-se passo a passo, lei a lei, teoria a teoria do funcionamento real das coisas, e mais; do seu devir existencial. Hoje, o homem comum agradece ao legado de formas inteligentes de atingir as verdades, vendo nos crentes meros anacronismos e anomalias da modernidade. Afinal, através da ciência, conseguiremos um dia criar a cura definitiva para o cancro, perceber exactamente como funciona o universo ou até perceber as causas e consequências de dado comportamento mental ou emocional de indivíduos que fogem à santa norma que é a sanidade. Santa não, porque só um idiota poderia acreditar que o nosso comportamento responde perante o divino. Responde antes pelas leis que a ciência, e apenas esta, pode esclarecer. Põe-se a questão: Será mesmo assim?

Seria de esperar que uma parte de mim concordasse. A ciência, o método científico, trouxeram sem dúvida algumas respostas a certos fenómenos. Sobretudo nas ciências chamadas exactas, mas não só, a ciência trouxe aquilo a que se chama regularmente de «progresso», por vezes apenas algum esclarecimento sobre questões antes intocáveis, sufocadas pelas mãos de Deus, outras vezes autênticas descobertas como o foram as leis da física. As ciências sociais trouxeram várias ideias e teorias importantes que por vezes dizemos corresponderem à realidade tal como ela é, mas que, acima de tudo, pusera-nos a pensar nos objectos sob os quais pairavam. Estas ciências já estiveram, aliás, numa situação menos agradável, em que cada resposta encontrada era tomada como um facto, uma inabalável realidade minuciosamente descoberta pela astúcia do sociólogo ou politólogo. Sem bons amigos como Karl Popper não sabemos se o marxismo e a psicanálise não seriam ainda consideradas como ciências puras, ou se o nosso cientista político ou sociólogo poderiam hoje trabalhar com o pressuposto de que as respostas que encontram são condicionadas pela estrutura da investigação – incluindo a pergunta que fazemos – ou a subjectividade inerente ao estudo. Não tenho ilusões – e, se tiver, deixem estar – mas parece-me que a ciência de hoje não é o mesmo diabo da do século XIX. Podemos comparar o que se diz incomparável e ver essas evoluções como equivalentes à de uma Reforma Protestante. Popper foi, na minha opinião, um pequeno Luther.

Não é, contudo, nenhum instrumento de verdades absolutas, e diz-se tão empírica como se dizia a religião, tornando-a absurda de uma forma similar. Parece que a ciência conseguiu inventar tanto quanto conseguiu descobrir, e manifesta uma obsessão pela norma, o normal, que é preocupante para quem consegue pensar para além do hoje e agora. A hiperatividade, o indivíduo hiperativo, é uma das manifestações dessa obsessão, das mais marcantes e óbvias, pelo que não é preciso ser-se Foucault ou Hacking para a perceber. Ian Hacking escreveu aliás coisas importantes sobre o tema. No seu texto "Formar Pessoas", nota como «motores de descoberta» tal a estatística não são apenas motores de descoberta, mas também motores para formar pessoas. A anomalia que consideramos ser as pessoas com personalidade múltipla, o «múltiplo», é um caso curioso. Vejamos a seguinte proposição do autor:

«Em 1955, esta não era uma maneira de se ser uma pessoa, as pessoas não se reconheciam a si próprias desta forma, não interagiam desta forma com os seus amigos, com as suas famílias (...); mas em 1985 esta era uma maneira de ser uma pessoa, de se reconhecer a si próprio, de viver em sociedade.»

Dito isto, será óbvio dizer-vos que o momento em que este fenómeno surge como um problema clínico mudou a vida dos «múltiplos», a conclusão sendo que a ciência os criou (ou iluminou) para os nossos olhos, e que os marginalizou, categorizou e transformou nos olhos deles. O autor atribui uma ordem racional pela qual se categorizam e formam pessoas. 1. Contar., 2. Quantificar, 3. Criar Normas, 4. Correlacionar, 5. Medicalizar, 6. Biologizar, 7. Geneticizar, 8. Normalizar, 9. Burocratizar e, finalmente, 10. Reclamar a nossa identidade: Os indivíduos tentam ganhar controlo sobre o seu destino, seja clínico para «anomalias» físicas ou emocionais, seja ao nível social; sim, será surpreendente para alguns descobrirem que os homossexuais eram alvos da clínica, que se tentava, na fase da "geneticização", encontrar o gene gay. A nossa cegueira científica leva-nos ainda, como exemplificou o autor, a ficar extremamente confusos quando o suicídio, associado à depressão, é feito por um terrorista que se «sacrifica» para matar. A ciência admite deixar erros residuais, hoje sabemos bem como nos atormentam. O terrorismo, claro, não é causado pela ciência, mas é ela, a base de verdade que nos fornece, o catalisador da nossa confusão. Não existe apenas uma causa para o suicídio. Aliás, não é preciso que exista uma sequer.

Há coisa de sete meses, conheci um estudante italiano que a dada altura me disse que estudava estatística. A minha reacção, traduzida numa qualquer expressão facial, foi aparentemente pouco discreta, e causada tanto por achar que há algo de heróico em querer estudar estatística como pelo desgosto que tenho em fazer uma cadeira de estatística. A esta reacção, e como se falasse para uma criança, ripostou: «Como podes não gostar de estatística?», apontou à nossa volta, «A estatística é a realidade!». Na altura, decidi que não valia a pena responder. Hoje, começo pelo mais óbvio, a estatística inferencial, a parte da estatística que tenta tirar conclusões sobre aquilo que conseguiu quantificar. Nesta parte, há uma enorme preocupação em encontrar a tendência, e, deduzindo-a, encontrar todas as partes de uma distribuição que não correspondem à tendência. São, por isso, anormais, fogem à norma. Isto pode ser aplicado a coisas simples, como a tendência das idades numa dada distribuição, e, infelizmente, para os efeitos que Ian Hacking (entre outros) demonstrou. A preocupação estatística não tem só coisas negativas, e é-nos extremamente útil no mundo que decidimos construir. Mas não há duvida de que é ela própria testemunha de algumas classificações impiedosas que fazemos a certos grupos de indivíduos.

 Há que pensar: A obsessão com as anomalias não é ela mesma uma anomalia humana? Não! Pior, uma anomalia criada apenas em dados espaços (ao início no ocidente) e em dados momentos? E quando procuramos tendências para formular leis e teorias, será que aquilo que foge à tendência não é uma parte importante do todo? O que interessa mais, a curva do modelo económico, ou antes todos os elementos que compõe essa curva? Para além da interpretação estatística, o próprio acto de quantificar revela uma especificidade da nossa forma de pensar. Não é, de facto, imperativo quantificar. Fazemo-lo porque queremos, porque achamos que nos leva às respostas que procuramos, mas as próprias respostas são o reflexo da forma como chegamos a elas. O «múltiplo» nasce da nossa busca por quem não esteja dentro da tendência comportamental.

A retórica científica começa a cansar os olhos. O excesso de informação, que embate violentamente contra mais informação, começa a revelar o quão a veracidade destas depende tanto da forma como ela é feita quanto de quem a aceita como verdadeira ou falsa. «Está cientificamente provado que...». Convive com o elitismo científico a banalização da ciência. Esta diz-se a salvação da mesma forma que a religião. São os cientistas e racionais contra os crentes e irracionais. No entanto, nunca pareceram mais próximos a ciência e a religião; ambas se querem rainhas da verdade, espelhos do absoluto e do empírico. Seguindo um método científico, quase sempre saberemos mais chegando ao fim do que sabíamos ao início – é inegável. Contudo a essência encontra-se em todos os erros, desvios e falhas da nossa investigação. Encontra-se também na perpetuação de relações de força, de imposição de poder. A estatística dá-nos as coordenadas da norma e do que lhe foge, a clínica corrige-a. A física, química ou matemática, das quais temos menos queixas por acharmos terem um certo grau de proximidade com a realidade, estão elas mesmas limitadas, e marginalizam à partida o uso de proposições e a capacidade especulativa. Génios como Einstein pareceram perceber isso, e aliaram à ciência a especulação. No entanto, estas últimas trazem sem dúvida muito mais de positivo do que de negativo. Aquilo que descobrem não será tanto o problema. Será antes o facto de reforçarem a retórica empirista da ciência. De termos homens tão inteligentes quanto banais como Neil DeGrasse Tyson a regurgitar estrume na televisão, a falsificar a história do ocidente ou do mundo muçulmano para chegar à conclusão de que os mais evoluídos são aqueles que gostam de ciência e não gostam de Deus.

Em suma, a ciência tem muito de benéfico. Aliás, tem tanto de benéfico que lentamente nos vamos esquecendo que ela não nos pode dar tudo, e que muitas vezes ela é prejudicial para o saber. Existe, nesse sentido, demasiado em comum entre a ciência e a religião. A racionalidade é uma solução, mas é também doentia. Chegámos ao ponto que Nietzsche temia: Os objectos de estudo estão a ser ofuscados pela forma como os estudamos.

Usemos a metáfora que, na República, Platão atribui a Sócrates. Diz ele que os homens que sempre viveram numa caverna iluminada apenas por uma fogueira só conhecem a sombra dos objectos que estão na caverna. A chama arde ao ponto de ofuscar a visão sobre os próprios objectos. Para estes homens, apenas a sombra dos objectos que a chama ajuda a projectar nas paredes da caverna é visível. Acreditam que as sombras são os objectos em si. Quanto a nós, possivelmente não conhecemos a forma dos objectos, mas sabemos o suficiente para perceber que a nossa dedução de que são as sombras está limitada pelas circunstâncias que nos rodeiam. O método científico – e sobretudo a retórica científica - é mais do que uma simples fogueira. A fogueira ilumina, e, tal como na metáfora, também engana. A nossa fogueira já se alastrou ao ponto de ser um incêndio. Não só engana, como começa a queimar a própria essência do saber. Afigura-se potencialmente como o suicídio do conhecimento humano. Deus já morreu. A racionalidade científica já se encontra em coma. E terá de entender que não é divina nem única se quiser sobreviver.

domingo, 17 de abril de 2016

Que loucura nos espera?

“Houve pessoas que julgaram que um rei podia fazer chover; nós dizemos que isso contradiz toda a experiência.
Hoje Julga-se que avião, rádio, etc. são meios de aproximação de povos e difusão de cultura.”
Ludwig Wittgenstein, 1949

  Aconteceu ter passado as últimas duas semanas em casa e, como tal, ter passado mais tempo no facebook do que havia feito nos últimos anos. Este excesso de tempo passado na rede social deu-me que pensar. Não planeio falar dos problemas mais convencionais – propriedade intelectual do conteúdo que colocamos nestes sites, a idade com que as pessoas os começam a utilizar, os problemas no trabalho que foram surgindo ao longo dos últimos anos, ou fenómenos como o cyberbullying. Interessa-me abordar outro lado da questão: já todos estivemos num café com amigos e, a certa altura, damos conta de que todos estamos no telemóvel, com grande probabilidade, numa rede social. Que fenómeno é este, que se vai tornando cada vez mais comum?
  Quando criamos e enriquecemos um perfil, projectamos uma imagem nossa num espaço virtual, de certa forma com a esperança (aqui, a frase “a esperança é a trela da submissão”, de Raoul Vanhaigen, aplica-se na perfeição) de que a rede a projecte de volta no real. Essa imagem transforma-se numa personagem na qual projectamos, premeditadamente, o melhor de nós – as nossas melhores fotografias, os nossos requintes, as nossas virtudes. O facebook é o mundo em que toda a gente é “bela”, o mais próximo da “perfeição” que consegue criar sobre si; ao desenvolvermos os nosso perfis, esperamos que essa “perfeição” regresse ao real, inviolada.
  O que nos vamos apercebendo é que não é essa imagem que regressa, mas o virtual em si que se intromete no real. No café, nas reuniões, nas conferências, nos parques, em todos os espaços de socialização, parece que a rede social vai lentamente substituindo o real social. Mais grave, parece-me, é a causa desse fenómeno: naqueles momentos antes de dormir, ao acordar, na pausa do estudo ou do trabalho, até quando vamos à casa-de-banho, que sempre foram espaços destinados ao convívio com nós próprios, passamo-los agora em rede. Que consequências terá essa substituição para o nosso auto-conhecimento, auto-estima, capacidade de lidarmos com os nossos problemas? Todas estas necessidades individuais passam a ser mediadas através de um ecrã. Torna-se mais evidente quando constatamos que em momentos de infelicidade ou tristeza o facebook se torna, na sua qualidade terapêutica, mais tentador.
  Com o tempo, também a forma de nos relacionarmos se altera. Se inicialmente a lógica do facebook era quase binária – “amigo”, ou não; gosto (ou não); partilho (ou não) – entrámos agora numa fase em que a própria plataforma se complexifica. Face a um post, a rede diz-nos que há seis tipos de reacções que podemos expressar: gostar, amar, rir, ficar impressionado, triste ou irritado. Numa conversa, surge um círculo que indica que a outra pessoa viu o que escrevemos, ao jeito de “a bola agora está do teu lado”. Com estes pequenos detalhes, a rede vai desenhado uma matriz de relacionamento. A sua matriz, que nos é imposta. Da mesma forma que nos relacionamos através dela, também a sua matriz se vai lentamente, creio, projectando em nós e influenciando a forma como comunicamos. A tentativa de recriar e agrupar em pequenos símbolos emoções tão complexas quanto as humanas é, no mínimo, perversa. Corresponde à ideologia do nosso tempo, a da substituição do qualitativo pelo quantitativo – embora hajam seis emoções possíveis a um post, logo são reagrupadas num número único de reacções, indiscriminadas na sua qualidade. Trata-se do fenómeno do hashtag ou dos vines – quanto vazio se consegue comprimir numa palavra, ou quanto nada se consegue expressar num vídeo de 6 segundos. Reduzimos o léxico, porque o pensamento está ele próprio mais reduzido. Também a solidez das nossas relações se vai reduzindo. Assim como o facto de quase todos usarmos as mesmas redes (aqui ou no Peru, com vinte ou cinquenta anos, exercendo a função de presidente da república ou agricultor) da mesma forma, fará apenas com que fiquemos mais iguais. Assustadoramente iguais.
  Até as nossas funções mais elementares, como a memória, são veiculadas pela rede – as nossas memórias visuais são, cada vez mais, as memórias que as fotografias das nossas redes contém.
  Por outro lado, os recentes atentados abriram um precedente perigoso – o facebook tenta, agora, tornar-se útil à organização social com a função “marcado seguro”. É uma função útil, e neste século tecnológico as soluções vão ser, cada vez mais, soluções em rede; mas temos que nos questionar – que perigo representa esta disponibilidade das redes sociais de se tornarem úteis, ou diria tendencialmente necessárias, à sociedade? Desejamos a presença, cada vez mais forte, de uma empresa cujas práticas no que toca à privacidade e propriedade intelectual são, no mínimo, duvidosas? Queremos que uma corporação, na qual não temos qualquer intervenção no processo de tomada de decisões, assuma um papel tendencialmente essencial à nossa vida?
  Estas redes gozam de uma vantagem muito clara – representam a tecnologia, o progresso, e o progresso não se questiona, aceita-se. Uso estas redes, como quase toda a gente, e insiro-me na maioria dos fenómenos que descrevi acima, mas não será altura de colocar questões sérias sobre as redes sociais e o efeito que têm na nossa mente, nas nossas relações, na nossa realidade?

  Em 2008 o facebook atingiu os 100 milhões de utilizadores; em 2014 metade da população portuguesa usava já um smartphone. Este aparelho é o mecanismo de alienação mais forte que alguma vez foi criado. Tratam-se de fenómenos recentes, mas é caso para dizer: que será feito das gerações que crescem, aprendem e se relacionam através destas plataformas? Se em menos de uma décadas chegamos a este ponto, onde estaremos, se não pusermos um travão a toda esta loucura, daqui a vinte anos? Que loucura nos espera?

quarta-feira, 9 de março de 2016

Feminismo, despolitização e interpassividade.

Tendo sido ontem celebrado o Dia da Mulher, pareceu-me relevante falar hoje de aquilo que se tem passado dentro da temática feminista nos últimos tempos. O livro "Elogio da Intolerância" publicado em 2004 pelo célebre filósofo esloveno Slavoj Zizek dá-nos aqui algumas ferramentas de análise interessantes mesmo não tendo analisado o caso do feminismo em particular. Feita a leitura do mesmo, tem-me intrigado cada vez mais a temática do feminismo renovado que emergiu ao longo dos últimos anos. Não se trata aqui de uma crítica aos tipos de feminismo mais tradicionais - como o marxista e o radical - mas antes de uma crítica frontal e sem escrúpulos ao feminismo que é agora conhecido de todos nós.

O livro centra-se numa crítica à nova ideologia dominante, sobretudo no mundo ocidental, que podemos associar a um certo centro alargado e tendencialmente liberal. Trata-se, para Zizek, de uma ideologia despolitizada e no entanto impregnada de multiculturalismo que ele vê como pouco autêntico e quase irónico. É também uma ideologia que se considera pós-ideológica, na forma como deixa para trás a velha dicotomia esquerda-direita. Assim, julga-se como uma nova forma de pensamento, transcendente a velhas disputas que o século passado provou serem pouco saudáveis, o que é, na minha opinião, um sintoma de uma ilusão de Fim da História da parte dos "pós-ideológicos". O multiculturalismo e as lutas identitárias - direitos queer, ecologia, defesa de minorias - são assim o resultado despolitizado de uma ideologia que aceita o destino capitalista enquanto o fim da estrada a nível sistémico, mas que não deixa, para já, outros assuntos por resolver. Interessa-nos reter que Zizek destrói o argumento de que alguém fazendo parte dessa nova ideologia se possa considerar como um indivíduo pós-ideológico, ou até despolitizado, pela simples razão de que uma ideologia é sempre auto-referencial. É por isso despolitizada, mas apenas até onde lhe parecer conveniente, e também fundamentalmente ideológica esta nova forma de (não) pensar a política e as lutas dela decorrentes.

A interpassividade refere-se, segundo Zizek, ou na verdade Lacan, ao oposto de interactividade. Enquanto a segunda é o resultado de interacção subjectiva entre duas (ou mais) partes, a interpassividade é o acto de uma das partes agir para que a outra se mantenha passiva. O exemplo clássico é o dos "risos pré-gravados" nas séries televisivas: A televisão "ri" por nós, representando a própria experiência passiva do espectador. Este último encontra-se agora incluído na série mas em estado passivo, ou seja, o seu papel de apreciação da piada é substituído anteriormente pela unidade activa da relação interpacífica. Para Zizek, as novas formas "pós-modernas" de política como as lutas identitárias de carácter pouco autêntico, e entre elas interessa-nos um certo feminismo, são o agente activo que permite a passividade de um outro agente, que seria, quem sabe, o da paixão pela discórdia política que visa um certo sistema económico global. Com o exemplo do relativo sucesso das reivindicações queer, Zizek nota que se realizou o que Judith Butler julgou impossível dentro do capitalismo que dependeria ele da estrutura familiar "tradicional": "A história do capitalismo não será a longa história da maneira através da qual a estrutura ideológico-política dominante se revelou capaz de conciliar (e de atenuar o carácter subversivo) dos movimentos e das exigências que pareciam ameaçar a sua própria sobrevivência?". Queers já estiveram mais longe dos seus objectivos, mas não terá sido por acaso.

Vade retro Zizek!

O feminismo de que falo pode ter vários nomes. O menos preciso de entres estes seria o de feminismo liberal (porque inclui palavreado e protestações que se enquadram na agenda da direita liberal), por isso seria antes preferível vê-lo como um auto-proclamado feminismo "pós-ideológico". Aliás, desde que a Beyoncé se tem começado a sentir como nova líder espiritual do feminismo, porque não chamar-lhe feminismo-pop? Bem vistas as coisas, pouco interessante será estarmos a distribuir nomes porque falamos todos de um objecto comum, nem que seja porque as redes sociais permitem uma produção e absorção fast-food sem precedentes do feminismo assim como de muitas outras ideias e movimentos.

Antes de mais, parece-me que este feminismo é de facto despolitizado, ou tenta ser, e é um dos agentes activos da interpassividade (pós-)política de hoje. Não se põem aqui em questão a verdade de que as sociedades contemporâneas são ainda, tendencialmente nuns aspectos e radicalmente noutros, de facto machistas, e parece-me até que ambos homens e mulheres - uns mais do que outros - ficam a perder com estas desigualdades, sem falar das vítimas sem voz que são os transsexuais. Precisamos de feminismo. O problema não é tanto o que se está a fazer. O problema é como e sobretudo porquê. Estas feministas conseguem lutar contra desigualdades de género ignorando desigualdades socioeconómicas que vinham fomentando e justificando as primeiras e muitos outros tipo de desigualdades - étnicas, sociais, etc. - sem um mínimo de preocupação em relação ao efeito contra-produtivo que isso poderá ter se e quando as reivindicações feministas vencerem. Para além das considerações sistémicas, é um feminismo que se corrompe e banaliza a si mesmo. Despido de política, despido de outros factores que o da relação homem-mulher ao nível artificial, é um feminismo minimalista, de intelecto reduzido e que nunca poderá discutir alguns dos problemas de raiz que criam as desigualdades de género. É, em suma, um feminismo que tenta dar uma resposta sem se fazer uma pergunta primeiro.

É ainda um feminismo que na minha opinião consegue ir para além da questão identitária interpassiva: Nas reivindicações identitárias pode ainda haver um "acordar" colectivo de todos os que pertencem a dada "classe" em luta, ora, parece-me que neste caso, aqueles e aquelas que a este feminismo se juntam fazem-no pela via individual, de limpeza de consciência, de forma a aderir de maneira superficial a um grupo que os coloca um pouco mais perto do grande politicamente correcto do progresso. É na minha opinião um tipo de grupo mais específico dentro dos grupos identitários pelo papel que dá à individualidade enquanto actor artificial, mas não vou esgotar o assunto aqui.

Infectado por redes-sociais e pop-stars que nunca se teriam interessado à causa em 1989, este feminismo foi por sua vez infectando algumas vozes do feminismo radical que considero mais "verdadeiro", sendo possível ver na página do The Guardian como feministas que antes se batiam com cabeça e caução agora se atiram de cabeça para a estupidez e provocação pura. Este é por fim, um feminismo auto-destrutivo por se deixar em campo aberto contra a maquinaria machista banal e imbecil, e ainda mais contra a conservadora não imbecil. Vencerá? Julgo que sim. Mas a vitória que irá alcançar será não apenas artificial como estruturalmente frágil se e quando se manifestarem outras tendências machistas na sociedade, para além das desigualdades não encaradas neste feminismo desconexo dos problemas de raiz. Não será, em suma, uma vitória definitiva e isto por causa da sua natureza despolitizada e também interpassiva: Despolitizada por ser um feminismo oco, artificial e apenas reformista; interpassiva pois os fantasmas da estrutura familiar e os papeis dentro da mesma que outrora atormentavam o feminismo podem regressar. Pode o modo de produção capitalista sobreviver com um ponto de igualdade perfeita entre géneros?


Em termos hegelianos, se queremos que a antítese à tese que é a sociedade machista seja a do feminismo "pós-ideológico", então a síntese daí resultante será uma que deixará as mulheres que acham que atingiram a tão merecida igualdade à boca de uma nova realidade que será de uma ainda maior vulnerabilidade para as mesmas. E enquanto isso acontece, aquilo que realmente importa, como diz Zizek, ficará intacto.