segunda-feira, 9 de novembro de 2015

Adam Smith, Darwin e a ética neoliberal - Da harmonia dos interesses à concorrência selvagem

              Escrevo este comentário em seguimento ao excelente post do Ricardo Henriques intitulado O Erro de Marx. Enquanto que o Ricardo procurou desmistificar os valores da esquerda obsoleta para que ela se possa desfazer do síndrome de Marx e assim evoluir enquanto força ideológica renovada, o comentário que se segue pretende atacar alguns dos valores centrais da ideologia neoliberal, partindo do pressuposto de que a interpretação dos pensadores neoliberais clássicos do contributo de Adam Smith estão incorrectas e desactualizadas. Para esse efeito, darei toda a atenção necessária ao evolucionismo de Darwin, mas irei também focar-me nas realidades económicas, sociais e demográficas que foram inviabilizando a teoria da harmonia dos interesses, sendo estas duas fontes, uma teórica e outra mecânica, os principais processos de inviabilização das economias neoliberais enquanto um todo.
             
             No seu livro, A Riqueza das Nações, Smith deu nascimento à escola do laissez-faire. Anteriormente tinha já chegado a outras conclusõesEstudando a sociedade, observou nela a existência de três classes: Aqueles que vivem de rendas, aqueles que vivem de salários e aqueles que vivem dos ganhos (earnings/profits). Afirmou também que os interesses destas três classes eram idênticos, ou seja, que seguiam todas um interesse comum - o interesse geral da sociedade. Havendo ou não uma consciência individual da harmonia destes interesses seria então uma questão secundária. Esse interesse estava baseado no interesse individual: Maximizando os seus ganhos, cada indivíduo faria o melhor de si mesmo. O indivíduo não  estaria assim disposto a servir o interesse público - sendo que até poderia não lhe acrescer valor nenhum - mas sim a servir-se a si mesmo. Assim sendo, se todos os indivíduos seguissem o seu próprio interesse, conseguiriam, a médio e longo prazo, melhorar a sociedade como um todo. Adam Smith chega assim a uma conclusão nascida das condições económicas e sociais vigentes na sua era: A Riqueza das Nações é uma reacção ao domínio do Estado e do regime nas vidas dos indivíduos. A Mão Invisível iria assim substituir o Estado para que a sociedade se pudesse melhorar, não havendo travão ao potencial dos indivíduos enquanto colectivo, nem do colectivo enquanto indivíduos.

        A harmonia dos interesses de Adam Smith, para além de ser uma reacção a um contexto social, fazia todo o sentido economicamente, aplicando-se perfeitamente à estrutura económica do século XVIII: Uma sociedade de pequenos produtores e comerciantes interessados em maximizar as suas trocas e ganhos. Era também uma sociedade em que a produção não implicava uma especialização muito aprofundada e em que havia mais interessados na maximização da produção do que na redistribuição da riqueza. 

     Enquanto que teoria do laissez-faire se encontrava ainda no laboratório pessoal de Smith, começaram a surgir invenções, tal como a máquina de vapor, que permitiriam a criação de indústrias gigantes, especializadas e sem fronteiras, e consequentemente de um maior proletariado mais direccionado para a redistribuição da riqueza. A invenção de Smith estava, pois, minada por outras invenções materiais. Uma vez concluída a criação das economias capitalistas, a harmonia dos interesses era agora mais normativa do que real: Quem sublinhava que existia ainda uma harmonia de interesses era a classe que estava preocupada em manter uma forma de dominância em relação aos trabalhadores. Enquanto que essa harmonia de interesses não existia realmente, a sua aparente existência devia-se ao crescimento da economia e da prosperidade sem precedentes. A contestação geral ainda não teria surgido porque a concorrência animalesca ainda não estava no ponto graças ao crescimento e expansão da economia, que davam lugar a novos sectores de produção, eliminando indirectamente a concorrência por sector. A questão das classes era ultrapassada pela introdução dos representantes das classes trabalhadoras no próprio mercado de bens. O capitalismo sobreviveu e bem durante esta fase inicial pela sua expansão e crescimento sectorial que parecia ter um potencial infinito.

     No entanto, rapidamente se sentiu o capitalismo a chegar aos seus limites, não ao nível do crescimento, mas do que ele representava tanto para os trabalhadores como para os empreendedores. Tínhamos chegado ao ponto em que a estrada tinha demasiados carros. Nas palavras de Karl Manheim, não é necessário controlar o fluxo do número de carros enquanto que este não excede a capacidade da estrada. O capitalismo, por força da sua expansão, chegou rapidamente a limitar a utopia liberal pela ferocidade da competição que tinha criado. Os escritos de Adam Smith serviam para economias pré-capitalistas, economias em transição para o capitalismo e economias na sua juventude capitalista. Depois disso, apenas servia para alimentar os estragos que viriam a causar. Assim, o sonho de que poderia haver uma harmonia eterna chegava ao seu fim. Segundo Dostoievski, o preço da eterna harmonia era demasiado elevado se implicasse o sofrimento dos inocentes.
    Nos finais do século XIX, o laissez-faire  ao nível internacional tinha beneficiado apenas  a Grã-Bretanha, deixando os restantes países em posições desiguais - facto que podemos associar à Alemanha dentro do Euro não racionalizado e indiferente face às desigualdades estruturais entre estados. Dentro da nova realidade económica, foi o evolucionismo de Darwin que permitiu justificar a nova harmonia de interesses. Ao nível da biologia, os mais fortes acabam por vencer os mais fracos. Esta mentalidade foi transplantada para a economia e o trabalho. Assim, a concorrência desmesurada, e portanto a destruição dos mais fracos, faz também parte da harmonia dos interesses. Não nos esqueçamos que o próprio Marx, no seu livro Theorien über den Mehrwert, disse que " o desenvolvimento da espécie (...) e por isso o desenvolvimento máximo do indivíduo, apenas se pode realizar ao longo do processo histórico onde certos indivíduos são sacrificados." Embora Marx teria certamente outra forma de ver o fim deste sacrifício, Darwin deixou uma marca clara através de todo o espectro ideológico. A marca do século. 

     A eliminação dos mais fracos é desde logo a faísca que transforma, sem que ninguém dê por isso, a harmonia dos interesses na concorrência selvagem e desmesurada, aplicando-se perfeitamente nas novas economias capitalistas, não apenas para justificar a dominância de uns sobre outros, mas também e sobretudo para maximizar o seu potencial de crescimento. Hoje, os resultados da concorrência selvagem levaram-nos ao crescimento das desigualdades entre indivíduos e regiões, à subordinação da política ao dinheiro e dos estados a empresas. Ao nível da política internacional, a insistência na harmonia dos interesses levou ao desastre utópico entre as duas guerras mundiais, alimentado por Woodrow Wilson e a SDN, que não entenderam que a harmonia dos interesses não servia para todos, e sobretudo não para os alemães, que tinham beneficiado muito das guerras em 1866 e 1870, e deixaram de lado políticas de poder (Power Politics) que poderiam ter evitado o desastre de 1939-1945. Nenhuma guerra se explica porque existe um maluco no poder de um estado. As guerras explicam-se mais pela inacção dos outros estados do que pela acção de um estado governado por um fanático.

   Com aquilo que sabemos hoje sobre a ideologia neoliberal, podemos concluir que os próprios neoliberais estão tentar aplicar uma utopia fora do seu tempo, sendo que Adam Smith desenhou uma teoria para a altura em que viveu. Seria como tentar aplicar a solução marxista num mundo hoje muito mais complexo. O génio de Smith não pode ser entendido por todos, e sobretudo não por aqueles que pretendem compreendê-lo. O evolucionismo de Darwin é uma realidade biológica. No entanto, tentamos aplicar uma verdade da natureza a uma realidade que é nossa, que podemos racionalizar e construir segundo aquilo que entendemos ser justo e exequível. A ética neoliberal baseia-se em valores nos quais acredito também, tal como a liberdade. Sou a favor de liberdade nos mercados, mas se ela se traduz em liberdade de nos esmagarmos uns aos outros é porque algo está errado. A liberdade não é empírica, deve também ela ser forjada e moldada segundo as necessidades e desejos que se apresentam. O neoliberalismo económico enquanto doutrina já falhou, agora vamos esperar pelas suas consequências.

   Citando Edward H. Carr: "O pensamento imaturo é essencialmente utópico e direccionado para um objectivo. O pensamento que rejeita o objectivo é o pensamento da velhice. O pensamento da maturidade associa o objectivo à observação e à análise"
   Vejo o pensamento neoliberal como o pensamento da imaturidade e da velhice. Mas nunca como o da maturidade.


terça-feira, 27 de outubro de 2015

O erro de Marx

Já muito tempo passou desde a minha última publicação no blogue. Não que tenha deixado de acreditar na importância da partilha de opiniões, antes pelo contrário, senti um imperativo de reflectir e estudar de forma mais profunda algumas matérias.
Karl Marx foi, para mim, dos filósofos que mais influenciou o estudo da sociedade e do seu funcionamento. Não apenas da capitalista, mas de como os homens se movem. Aquilo a que Karl Popper chama do economismo de Marx, a sua tese de que são as relações de natureza económica entre os humanos que em última instância definem as coordenadas da sua relação em sociedade. Mas, na minha modestíssima opinião, é precisamente aqui que reside um dos seus erros.
Theodor Adorno e Max Horkheimer, na sua obra conjunta "Dialéctica do Esclarecimento" definem o conceito da realidade social como totalidade, isto é, como um conjunto de diferentes factores, materiais e meta físicos. E devemos pegar na sua análise para poder corrigir a teoria marxista.
Uma vez que a atribuição de sentido pertence ao campo subjectivo de cada um, e que esse campo subjectivo, pela unicidade das suas vivências, é único e imprevisível, o impacto desta imprevisibilidade na atribuição de sentido é também ele imprevisível. A vontade de um grupo de indivíduos que se une por uma causa que seja transversal à sua condição social e que una pessoas de diferentes meios económicos pode, por exemplo, superar as relações económicas estabelecidas indirectamente entre si. A História, quando não é lida retroactivamente, está repleta de acontecimentos que surgiram por factores muito mais complexos que a simples vertente económica. As próprias condutas éticas e as diferentes percepções em relação à riqueza material entre as diferentes sociedades ocidentais europeias, e a própria variedade de concepções dentro de cada sociedade, demonstram que a atitude perante a solidariedade, a xenofobia, a família, a pobreza, dependem de muito mais factores que simplesmente a relação económica entre os indivíduos. Olhando para a situação de hoje, devemos, por exemplo, procurar entender os conflitos "Europa do Sul vs Europa do Norte" para além das questões económicas; como também devemos procurar entender os meandros psicológicos e sociológicos que levam a um crescimento do anti-comunismo na Europa de leste sem cair nas mesmas explicações simplistas acerca do impacto da sua economia mais lenta e menos modernizada ou do aparelho de Estado mais ou menos controlado por interesses particulares que não gera a qualidade de vida esperada depois da queda do socialismo.
Se queremos realmente compreender o funcionamento da sociedade devemos ser capazes de incluir no nosso estudo todos os factores de ordem qualitativa que nos influenciam e que nós próprios criamos para dar sentido à realidade. Temos de ser capazes de compreender a complexidade do universo subjectivo de cada indivíduo e a consequente complexidade das relações resultante desta subjectivização.
Concluindo, para sermos capazes de construir a sociedade pós-capitalista, a nova utopia da esquerda, temos de assumir a responsabilidade de sermos os mais críticos de Marx, de Lenine, de todas as experiências falhadas de socialismo real e de todas as abstracções teóricas que levaram a esquerda para o beco sem saída em que se encontra hoje.
Falar de "socialismo" sem antes condenar de vez os crimes cometidos por esse nome e sem assumir o falhanço é o acto mais ridículo e superficial que se pode ter. A esquerda tem de ser corajosa e intelectualmente honesta. Tem de ser capaz de assumir os seus erros e as limitações das interpretações anteriores do que deve ser a sociedade não-capitalista.
Se queremos levar o trabalho de Marx para a frente há que assumir e apontar os seus erros, corrigi-lo e honrar as suas limitações.  

domingo, 15 de março de 2015

Uma guerra que não é nossa

Se há equívoco que leva a desentendimentos de forma desnecessária e gratuita, é o equívoco dos falsos opostos.
Falo neste equívoco porque há um tema da atualidade que nos leva constantemente para discussões sem sentido onde se tomam posições automáticas sem reflexão. Falo da questão do ISIS e da intervenção dos E.U.A. no médio oriente. Este é um tema onde, muito mais à direita do que à esquerda, se tende a cometer o erro do "se não estás comigo, estás contra mim."
O sentimento anti-americano que se pode observar na esquerda não pode nunca ser confundido com uma postura pró jihad nem ser tomado como uma posição de desculpabilização dos atos terroristas cometidos por um grupo islamo-fascista. A postura do verdadeiro anti-terrorismo de esquerda obriga à imediata condenação tanto do ISIS como do estado americano. Jamais se pode compactuar com a postura hipócrita e cínica liberal, que criou e alimentou uma tensão política e social de tal forma que agora não tem maneira de o resolver, nem com os atos bárbaros e selvagens de um grupo criminoso por muito ressentimento que o esteja a motivar.
Neste tema, a direita fixa-se na masturbação intelectual do período da Guerra Fria condenando qualquer crítica ao "perfeito" sistema democrático liberal, seguindo religiosamente um Fim da História que nem o próprio Fukuyama ainda acredita. Mas é preciso acabar com esta falsa dualidade. Essa guerra não é nossa. Não no sentido em que não temos que trabalhar para resolver o conflito, mas no sentido em que o trabalho para a resolução passa precisamente pela crítica aberta às duas frentes e aos dois tipos de fanatismo. O pensamento crítico não é um valor americano, nem a liberdade de expressão, muito menos os direitos humanos. Não há países salvadores da humanidade que sintam que podem bater a porta de todos os parlamentos para vender a "democracia". Nem pode haver grupos que se desresponsabilizam da sua condição humana e do seu elo de ligação com o Outro em nome de uma religião.
Não podemos deixar que se caia em discursos mccarthystas nem em visões limitadas das tensões políticas. Porque apesar de acreditar no direito à auto-determinação dos povos, não confio nestes dois estados auto-proclamados.

domingo, 1 de março de 2015

Será possível pensar numa sociedade não repressiva?

Segundo Herbert Marcuse, a sociedade capitalista deu o seu passo fundamental quando o Princípio de Desempenho (o princípio de maximizar o contributo de cada um de acordo com a divisão do trabalho) se tornou no Princípio de Realidade (o sistema ou quadro de valores de referência para uma sociedade). Este Princípio de Desempenho, para funcionar na forma adequada, parte de uma repressão do Princípio de Prazer, presente nos nossos instintos. Esta repressão não afecta o mundo das fantasias, mas interfere com a nossa percepção consciente e inconsciente da realidade e com a nossa construção moral. Desta forma, a repressão dos instintos é um princípio fundamental para o desenvolvimento do Princípio de Desempenho. Este, na sua forma óptima de funcionamento, perpetua a máquina capitalista e cimenta o lugar de poder e influência da classe dominante. Esta repressão surge como a resposta para o funcionamento civilizado da comunidade, sob pena da desagregação do tecido social. Contudo, os instintos só surgem como desagregadores do Princípio de Realidade quando este é o Princípio de Desempenho e porque foram submetidos, desde o nascimento do indivíduo, a uma repressão, originando assim a tensão entre os desejos inconscientes e as exigências da sociedade, a famosa tensão freudiana do id e supereu. Para Freud, esta relação antagónica era perpétua e inerente a qualquer sociedade.
Será então possível construir uma sociedade não repressiva?
A questão deve ser reflectida de forma séria. Foi primeiramente colocada e aprofundada pela Escola de Frankfurt, e há um argumento que me leva a querer colocá-la, pondo em causa a premissa de Freud: a repressão só se dá aquando o nascimento do indivíduo, isto é, só acontece quando este é exposto ao Princípio de Realidade vigente. A tensão não é inerente a qualquer ser humano, é resultado do antagonismo entre o Princípio de Desempenho em si e o Princípio de Prazer, devido à repressão que necessita de aplicar para o funcionamento da sociedade tal como a conhecemos. Assim, abre-se caminho para a discussão sobre a veracidade do carácter inultrapassável da tensão supereu-id e para a discussão sobre a possibilidade (mas não probabilidade) de construção de uma sociedade em que esta tensão foi resolvida.
Dentro da Escola de Frankfurt, há quem defenda esta possibilidade e por isso se afasta de Freud. Mas também há quem rejeite esta ideia, considerando que a premissa de um antagonismo inultrapassável entre o supereu e o id deve ser tomada como verdadeira. A minha posição situa-se entre os dois pólos, tentando conciliar algumas ideias de Erich Fromm (defensor de que uma alteração na estrutura da sociedade poderia originar um alívio da tensão) e Slavoj Zizek (defensor do retorno ao pensamento lacaniano que defende os pressupostos freudianos).
Como?
Tal como já referi no meu outro texto, uma auto-reflexão profunda, que recupere a soberania do indivíduo na construção da sua identidade e da sua rede simbólica, dá o primeiro passo para uma auto-análise dos próprios instintos e repressões sofridas do exterior. Esta capacidade de auto-análise permite a superação de sentimentos de culpa, de desejos insatisfeitos, de complexos de inferioridade causados pela repressão, integrando o inconsciente no consciente, permitindo a reflexão racional e consciente do indivíduo sem descartar as emoções e a estrutura simbólica da nossa realidade. Esta soberania é o que permite fazer o julgamento completo (defendido por Adorno, julgamento que incorpora a Emoção e a Razão) livre de grande parte da repressão exógena.
Por sua vez, é também esta auto-análise que permite uma participação consciencializada em projectos de acção política que procurem anular a repressão. A ausência de repressão só pode ser discutida, como projecto para lá da utopia, quando a própria repressão for totalmente compreendida por cada indivíduo. Retomando os termos marxistas, quando houver uma consciencialização. O que Marx não sabia, nem podia saber na altura, é que hoje a complexidade da alienação não se limita ao desconhecimento dos mecanismos de dominação por parte da classe burguesa. A alienação de hoje passa pela própria aceitação.
O passo para esta consciencialização e subsequente superação da repressão é o passo que temos que dar hoje. Todos e cada um.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

Uma ingénua reflexão sobre o pós-capitalismo

O sistema capitalista infiltrou-se em inúmeras esferas do ser humano. Interfere de forma destrutiva mas ao mesmo tempo perpetuadora do próprio sistema. Esta interferência é, muitas vezes, mais visível no campo Simbólico, penetrando no nosso inconsciente e deformando a nossa percepção das coisas, do Outro, de nós próprios, da realidade. A profundidade e o alcance destas interferências é tal que na nossa concepção do fim do mundo ou do fim da própria vida, atribuímos primazia à ideologia. É tal a interferência, e de tal modo destrutiva, que o uso da Razão está também ele minado pelos pressupostos e valores capitalistas, reduzindo, a priori, o alcance do nosso raciocínio e a sua complexidade. A influência negativa da lógica de acumulação, tanto para o universal como para o particular, é algo já muito falado e estudado.
A pergunta é, recordando o velho Lenin, "o que fazer?". Para responder-mos a esta questão precisamos: 
1) Analisar criticamente as tentativas falhadas de superação do capitalismo;
2) Formular novas perguntas adaptadas ao nosso contexto histórico-social repensando a sociedade à luz dos teóricos do passado.

Estas são as duas grandes sugestões de Slavoj Zizek, mas uma vez dados estes dois passos, temos que nos atrever a iniciar o processo de superação do capitalismo. Esse processo divide-se em três grandes esferas (individual, local e global) e deve começar exactamente onde a interferência ideológica é mais profunda: no campo Simbólico. 
Mas como? 

Na minha humilde condição de estudante, arrisco-me a propor uma "destruição metafísica" das relações de poder feitas através do dinheiro/capital. Esta "destruição", no plano local, deve ser levada a cabo por um número considerável de membros da comunidade, exigindo um mínimo de compromisso, concentrando-se em criar estratégias de não reconhecimento dos mercados capitalistas recorrendo a formas alternativas de troca. No campo global, deve-se fazer frente às grandes instituições financeiras através da cooperação entre estados e da criação de redes alternativas que não respondam perante os gigantes tradicionais. É arriscado, mas aqui devemos seguir Napoleão "On s'engage et puis on voit".
No campo individual, a "destruição" deve seguir as velhas orientações de Marx: auto-reflexão e a recuperação da soberania na atribuição de sentido aos nossos objectos de desejo e na construção da nossa identidade. Este passo na esfera individual é o que permite a participação activa e eficaz nos compromissos de acção colectiva. Sem esta auto-reflexão, a participação torna-se cega. Isto é, a impermeabilidade do sujeito perante uma possível deslocação da sua identidade para a Causa em si, a total entrega ao Grande Outro, fica muito reduzida.

Assim, existe uma relação de profunda e complexa dependência entre estas três esferas. E, seguindo a tríade lacaniana, existe também uma relação de interligação entre o Simbólico, o Imaginário e o Real, modificando-se e afectando-se entre si. Desta forma, uma revolução no Simbólico, obrigatoriamente inicia uma revolução no Real e no Imaginário.
É com esta "destruição metafísica" que se torna possível libertar da prisão ideológica que vivemos. Sem ela, os nossos instintos e vontades inconscientes continuarão a seguir o quadro de valores capitalistas.

É preciso sair da alienação, tomar consciência, compreender a ideologia e a repressão. É preciso recuperar a consciência do nosso poder, da nossa autonomia, da nossa liberdade e, em última instância, de nós próprios. 

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

Sobre Esperanças e Sectarismos


  A vitória do Syriza é uma vitória de todos os que se opõe à Europa do século XXI. De todos os que se opõem à austeridade. De todos os que põe as pessoas à frente do capital. Talvez não satisfaça os puristas, talvez não venha a ser o que parece, talvez haja incongruências; mas não há nada que lhes agrade, não há nada que venha a ser o que se planeou, não há nada que seja coerente em absoluto. Sou obrigado a subscrever o Zizek quando afirma que o Syriza foi a esquerda que teve a coragem de largar o conforto do confronto marginal para arriscar tomar o poder. Pode ser um conforto com objectivos mais “complexos”, mas é um conforto. Sem conotação positiva ou negativa, apenas como facto.
  Sou da opinião de que há soluções diferentes para o mesmo problema, e apoio as várias tentativas. A tomada do poder mantendo a mesma matriz institucional seguramente não me parece a melhor estratégia a longo prazo, mas 300 000 gregos têm agora acesso aos serviços mínimos que antes não podiam pagar. O funcionário do Pingo Doce grego ganha agora quase mais 200€ que antes. Se no longo prazo esta pode não ser a melhor estratégia, no curto prazo é uma vitória inigualável na Grécia. Pelo menos para aqueles que lá vivem.
  Para além disso, abrem-se mais portas. A esquerda radical está a conseguir recuperar espaço político na Europa. Acima de tudo está a conseguir, lentamente, equiparar o seu crescimento ao da extrema-direita, o grande perigo que enfrentamos agora. O timming também é o certo, a menos de um ano das legislativas espanholas, a vitória do Syriza pode ser a garantia do Podemos, e pode ser o apoio de um possível Costa na Europa ou, num cenário ambicioso, o impulso que falta ao Die Linke ou ao BE. Não falamos de paraísos, mas de uma europa menos infernal. É nesse sentido que estas são, incontornavelmente, vitórias.
  Falamos de partidos populistas? Sim. Mais uma vez, a via do populismo de esquerda não me parece a mais bela, mas se for esse o meio para melhorar francamente a vida de uns milhões de pessoas, que seja.
  Não são as vias e soluções que mais apoio ou nas quais deposito mais esperança, mas julgá-las sem lhes conceder crédito é simplesmente triste. Entristecem-me aqueles que não conseguem mais que tecer críticas sem conceder créditos, aqueles que não conseguem conceber mais do que duas cores, que não percebem que o mundo não é preto no branco e que é precisamente nas tonalidades que reside o valor das coisas.
  Prefiro o branco, mas na impossibilidade de o obter, prefiro que o cinzento seja claro.
  Agora, resta-nos esperar. No meu caso, espero que o Syriza consiga ser bem sucedido naquilo a que se propõe, aos sectários de esquerda que lhes desejam mal, precisamente por o fazerem estão um passo mais longe de serem bem sucedidos nas suas próprias lutas.

quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Ideias locais para soluções globais


  O capitalismo leva agora mais de um século de desenvolvimento. Está integrado em todos os sectores da sociedade. Ao contrário do que se passava antes, a lógica quantitativa do mercado está presente em todos os espaços que por excelência se distanciavam dessa lógica. Das artes ao tempo livre, da casa ao café, da cultura à tecnologia. É cada vez mais difícil distanciarmo-nos da lógica mercantilista em vigor. Rejeitá-la apresenta-se uma tarefa heroica.
  Já não há, pelo menos na Europa, uma esquerda forte. Não há uma cultura revolucionaria num sector representativo de nenhuma sociedade europeia. Não existe esquerda radical que não seja meramente circunstancial, o Syriza e o Podemos são esquerdas radicais, de dimensões significativas, mas tão passageiras como o Bloco de Esquerda o é. Os objectivos originais de todas as esquerdas foram-se dissolvendo em exigências temporárias. A procura da cura transformou-se em administração de medicamentos. Não consigo conceber, nesta década ou nas próximas, uma solução europeia. Muito menos uma solução mundial. Infelizmente, essas soluções são “coisa do passado”.
  São escassos aqueles que publicamente se assumem como anti-capitalistas, pelo menos na esfera pública, o próprio termo cai cada vez mais em desuso por calculismo político mal calculado.
  Coloco-me então a questão: não passará a solução pelo inverso? Soluções locais e autónomas que tenham o potencial de expansão? Que sejam o laboratório de experiências políticas, quer de organização social como de pensamento livre, de novas formas de governo e antigos métodos de autogestão.
  Comunidades excedentárias que possam usar excedentes para combater défices. Não há emprego ou desemprego numa comunidade, há tarefas, infinitas. Umas necessárias outras acessórias. Não há forma de uma comunidade ser auto-suficiente e ter variedade nos produtos que dispõe. Nem creio que seja desejável uma comunidade que se deseje excluir em absoluto de tudo o que o capitalismo trouxe com ele. Mas é possível que disfrute sem excesso do que de bom há no “desenvolvimento” recorrendo aos excedentes como meio de financiamento.
  Estas comunidades, no entanto, têm que deixar de ser exclusivas daqueles que se marginalizam para serem escolha daqueles que se afirmam. Têm que ser escolhidos não só por nós, mas pelas figuras públicas deste mundo, da política à cultura. Parece-me, infelizmente, que para ganharem a dimensão de “alternativa” têm que ser legitimadas desta forma.
  Têm que se tornar espaços de criação artística e intelectual. Espaços onde a labora e o trabalho são duas coisas diferentes, a primeira necessária e limitada pela necessidade, o segundo como uma escolha, ilimitada pela vontade. O que as cidades foram noutros tempos, pode agora ser o campo.
  O efeito multiplicador aplicar-se-ia na perfeição a este meio, que no espaço de gerações poderá vir a constituir a melhor e mais desenvolvida alternativa ao capitalismo. A multiplicação de comunidades deste género, acompanhada de perto pelo desenvolvimento tecnológico criará condições para que este estilo de vida, inicialmente ligado ao mercado por necessidade dele se separe por possibilidade.
  Que outra solução é tão exequível e real? Que outra solução pode ser tão global senão uma local? Só este formato permite a diversidade necessária para uma escala mundial. Só assim quem se governa vive contente com o seu governo, porque é seu, não apenas escolhido por si. Para além da diversidade de novos sistemas que necessariamente surgirá, a globalização permite igualmente a partilha destes, que não sendo mais marginais se podem rapidamente tornar originais alternativas.
  É a única alternativa real em que consigo pensar. Seguramente existem outras, e esta sem dúvida desencadeará outras tantas, seguramente melhores. Mas como primeiro passo, parece-me o passo mais acertado.